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sexta-feira, julho 28, 2006

“De Goiás”, não “do Goiáis”

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Na falta de mais “argumento” para ridicularizar os goianos, inventou-se, em Brasília, de se referir a Goiás antepondo-se o artigo. Sempre que ouço o modo pejorativo que os candangos adotaram para nos provocar, lembro-me que, ao surgir o Estado de Tocantins, veio também a dúvida: dir-se-ia “o Tocantins” ou apenas “Tocantins”? Alguém argumentou que “o Tocantins” seria sempre uma referência ao rio que dá nome ao Estado e que, portanto, a nova Unidade Federativa, quando citada, dispensaria o artigo.

A rigor, ante todo o Brasil, goianos (especialmente os do sul de Goiás) falam igual aos mineiros; não é verdade e há uma proximidade muito grande, sim, entre nós e os do Triângulo. Até porque Minas Gerais tem vários sotaques. Entendo que a maior diferença se vê quando mineiros e goianos pronunciam palavras oxítonas terminadas em “s”: Goiás, ananás... Os mineiros unem a vogal e o “s”, mas nós pronunciamos como se houvesse um “i” (pus aspas para enfatizar a letra, apenas). E os brasilienses, que sequer definiram ainda como falar, ridicularizam-nos pelo modo roceiro de falarmos, como se isso fosse sinal de inferioridade.

Leio demais, especialmente em revistas, jornais e publicações da Internet, as mais estarrecedoras “pérolas” em textos. Há que se ver o quanto, neste país, pessoas formadas ainda não entenderam se um simples “a” (como palavra) leva crase ou não, ou se é verbo haver ou preposição; confundem tudo, a ponto de dizer “não te vejo a meses” ou, pelo contrário, “daqui duas semanas estarei aí”. Não é só: a quase totalidade das pessoas (estou concentrado em portadores de diplomas de universidades) não sabe diferenciar “nato” e “inato”; aliás, não sabem sequer da existência da segunda palavra e dizem “Fulano é um artista nato”.

Há coisas piores: já ouvi escritor que é também procurador de Estado, professor universitário e outros itens de currículo falar “troféis” como plural de “troféu”; deu vontade de dizer a um colega que plural de “jirau” é “jiraus”, e não “girais”, como foi publicado. Mas os jornais e revistas de âmbito nacional cunham frases como: “Me sinto perplexo diante de tanta...”. A imprensa desacata a gramática, desrespeita a língua e arvora-se de autoridade ao editar manuais de redação; parece até que escribas têm autoridade sobre a língua.
Ora! Um escriba, seja escritor ou jornalista, está para a língua como o motorista para o automóvel; jamais seremos engenheiros ou mesmo mecânicos.
Semana passada, escrevi na crônica que publiquei aqui a palavra “mezinhas” (assim mesmo, com “z”), que quer dizer “receita caseira”; por um lapso não sei de quem (juro pelos sagrados que escrevi com “z”, meu original está aqui), a matéria publicada veio com “mesinha”. Um leitor rigoroso escreveu-me cobrando o erro e o corrigi na versão eletrônica, mas no jornal... Aí não tinha mais jeito.

Um erro é sempre um bom pretexto para que pesquisemos, que estudemos mais, e não para jogar pedras. Mas isso de dizer “no Goiáis”... Sei não. Até porque nem todos os de Goiás são do Goiás; há os do Atlético e até, ainda, os do Goiânia; eu mesmo sou do Vila Nova.

segunda-feira, julho 24, 2006

Duas línguas

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Um beijo doce e lento
com vagar e ternura:
começa no abraço.


Anuncia-se

e adivinha a boca que chega
plena, intensa.


Lábios, línguas e salivas

unidos a anunciar: a noite
é um lençol de segredos.


II

Ainda que triste
dou-lhe um beijo de ternura
e inocência, meigo e fundo.


Agora, evoco um anjo.
Ele, zeloso, cuidará
por sua paz.

sexta-feira, julho 21, 2006

Vantagem de Velho

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Na fila do banco, um caixa ostenta o cartaz: "Preferencial para portadores de necessidades especiais, gestantes, idosos" etc. Na fila geral, ao lado, meu amigo me provoca: "Rapaz, você é do lado de cá". Agradeço-lhe a gentileza do tratamento, mas respondo que já dobrei o "Cabo da Boa Esperança" e não abro mão do direito de ficar na fila especial. Ante a brincadeira, outro idoso, à minha frente, comenta dos dezessete quilos que dispensou nos últimos doze meses e me falou de incômodos estomacais.

É assim: velho gosta de falar de doenças e extravasam a alegria de tê-las vencido. Quando não, contam de macacoas e apontam soluções milagrosas, quase sempre fora dos conceitos alopáticos e homeopáticos, centrados em mezinhas do tempo das vovós (deles, os mais velhos). E assim, com a fila caminhando lentamente, o tempo passa sob a ação perfeita dos puxadores de assunto em feiras, filas, salas de espera de médicos, ônibus...

Dia desses, um amigo me preveniu: "Se eu te vir furando fila, faço escândalo e não deixo você passar". Não deixei barato: "Experimente! Chamo a polícia e mando prendê-lo, é da lei". Outro me pergunta por que faço questão de me beneficiar disso, se não tenho limitações. "Pôxa − respondi −, é direito meu, siô!" Sim: tem gente que acha que a lei devia restringir-se aos velhos com limitações. Que cinismo! Ser velho já é uma limitação. Aos 60, produzindo textos de prosa e poesia com mais desenvoltura que antes, não consigo emprego: "Passou da idade", dizem-me, veladamente, porque não é legal responder "na lata" que o motivo é esse. Mas eu vi uma diretora de escola particular, na solenidade dos seus 48 anos, recusar currículo de uma professora (com mestrado, é bom que eu diga) porque a moça chegara aos 39 anos. "Está velha" – disse a freira-diretora – sem nenhum espírito cristão.

Na fila, percebo que alguns velhos trazem um envelope-saco, desses pardos, cheio de papéis de pagamentos: contas de luz, três; de telefone fixo e celular, cinco ou seis; carnê de prestação de carro do neto; carnê de prestação da geladeira da filha; outro, do computador de outro neto; contribuição para o INSS; parcela do Imposto de Renda da nora...

Assim, a fila dos idosos, que devia beneficiar os velhinhos com a perspectiva de menos tempo, vira um suplício. Neste caso, o velho que trouxe o envelope cheio de pagamentos a fazer é torturado; não pelo banco, nem pela clientela "não-preferencial", mas pela família que lhe deve respeito e amor. O vovô virou contínuo dos marmanjos preguiçosos. Sacanagem!

Mas, por escolher a fila dos velhos, paguei um mico em Copacabana, no Rio. Entrei na agência bancária, peguei uma senha de vovô e fiquei lá, esperando; foi nada menos que uma hora e quarenta minutos de espera. Havia velhos de bengala, de muletas e até de andador. Só então me dei conta: aquele é um bairro de velhos, muitos deles vivem sós, e demorar na fila do banco é algo prazeroso: ajuda a matar o tempo ocioso. Enquanto isso, a fila dos "não-preferenciais" andava, e bem.

Irritado e já perdendo o horário para um almoço marcado, ficou em mim a lição: em Copacabana, se tiver pressa, melhor deixar de lado a condição de velhinho, uai!


segunda-feira, julho 17, 2006

À moça de ontem


Ela se foi e ficou
um gesto e a promessa
de hoje, às quatro e tal.

Ficou um silêncio
de triste
e ficou esperança.

A moça de ontem
olhou-me por dentro
e de dentro.

Que mãos de cândida
e voz de cantiga!
É anja, a moça!

Vestia rendas de alva.
Nos olhos brilhava mel
e me beijava.

A moça de ontem se foi
e era linda.
Quanto tempo, moça!



Luiz de Aquino

domingo, julho 16, 2006

A bola, o fiasco e a locução




Passada a euforia (e a inevitável decepção) da Copa do Mundo 2006, mudei as cores da minha torcida, é claro. A primeira mudança foi trocar o amarelo pelo vermelho e o samba pelo fado. Confesso que não senti trocar de pátria: somos cria daqueles lusos e, bons filhos, passamos a eles a arte da bola no gramado, via Luiz Felipe Scolari. Valeu o esforço do gaúcho, descendente de italianos, como boa parte da população e da emoção deste Brasilzilzil...

Não deu. Não deu, mas os irmãos lusitanos caíram de pé, não ficaram em posição suspeita na intermediária ajeitando a meia,não... Dentre os portugueses não se viu ninguém com sorriso de menosprezo em campo como quem dissesse: “Tudo bem, renovei meu contrato e estou mais rico hoje do que há quinze dias, meu futuro está assegurado, etc. e tal...”.

E aí, aquela final de anil: de um lado, os azuis dos reis Luíses; de outro, a Squadra Azzurra dos meus avós e dos avós de Scolari. Azul por azul, fiquei contra Les Bleus gauleses (se bem que o domínio racial naquele time vinha do norte da África; nada demais, porque os nossos craques têm sempre um pé no mais antigo dos continentes, o primeiro dos mundos).

Bom de ver Zidane jogar; melhor ainda vê-lo perder a cabeça ante uma provocação. Grande craque ele! Eu diria que Zidane é 20% de Pelé ou 10% da graça de Garrincha; aquele lençol em Ronaldo não é nada, queria ver se ele faria o mesmo com Robinho... Duvido e aposto! Zidane mereceu o título de “o melhor”desta copa de poucas evidências, sim. Mas, melhor que ele, só na Copa de 70 tivemos cinco. Ou seis. Ou onze.

Duro mesmo é ouvir os locutores de tevê dizendo que Portugal “perdeu da Alemanha”. Quem é Galvão para mudar a regência dos verbos, Leda Selma! E nas rodas de debate? Não bastassem as crônicas fraquinhas do biguebróder, temos de ouvir o “espíquer” (era assim que eles se diziam, antigamente) referir-se aos times italianos no feminino: “a Juventus, a Milan, a Udinese”... Em italiano, usa-se o artigo feminino porque eles lá dizem “squadra”, e não time, como o dizemos aqui; e, no Brasil, apenas os times chamados Portuguesa são ditos no feminino, mas até mesmo o América (América é palavra feminina) é tratado no masculino (subentende-se a palavra “time”).

Então? (desculpem-me, mas está na moda começar frases com a palavra “então” querendo dizer exatamente nada, apenas para enfatizar; então, vou começar de novo): Então? Além de ver a Seleção fazendo uma das piores campanhas jamais vista, além de ver ruir todos os nossos ídolos, temos ainda de ouvir disparates dessa natureza. É pouco? Não, meus amigos, tem mais...
Duro mesmo é ver os garotos-propaganda globais chamando ídolos (ainda que ídolos de pés de barro) de heróis. No “Aurélio”, achamos como um dos conceitos: “Homem extraordinário por seus feitos guerreiros, seu valor ou sua magnanimidade”. Mas está lá, também, o segundo conceito: “P. ext. - Pessoa que por qualquer motivo é centro de atenções.” Notaram? Só por extensão. Mas, digam-me: alguém aí gostaria de ser chamado de “herói” daquele jeito, hem?

sexta-feira, julho 14, 2006

De Érica Camaroto

Poeta... comecei a escrever em seu "scrapbook" mas o espaço não foi suficiente para eu expressar o que gostaria. Eu admiro imensamente a sua sensibilidade e simplicidade. Seus poemas têm uma sutileza que é própria das grandes obras. Invejo a sua alma desprendida que possui o dom de descrever momentos e sentimentos sem falsos pudores e sem falsos galanteios. Ao ler seus poemas, muitas vezes, sinto-me rubejar por diversas razões. Primeiramente pelo toque "picante" de suas palavras que inevitavelmente fazem com que qualquer mulher que já tenha sido bem amada recorde momentos já vividos (o que explica um certo "desconforto" ao lê-los). Em segundo lugar, porque ao me deparar com palavras que podem tão adequadamente descrever situações de intimidade, me sinto meio que "invadida", por constatar que o meu "eu" não é tão único quanto eu pensava que fosse. Em terceiro lugar, por entender que tudo o que já estudei na minha vida de "Letras" não me ensinou a utilizar tão bem as palavras quanto você as utiliza, como um espelho da alma. Assim, não me sinto apta a elaborar uma crítica formal sobre qualquer obra sua. Diante da sua grandeza como escritor, coloco-me como leitora e como admiradora, de modo que peço-lhe licença para colocar em meu site ( http://ericacamarotto.multiply.com ) alguns escritos seus. Se me der o prazer, grata serei. Se preferir que eu divulgue o endereço de seu blog ao invés de transcrever alguns poemas ou crônicas, ótimo também. O que eu quero é que você possa fazer parte de um espaço que acabei de criar e em que haverá apenas coisas das quais gosto muito.

Erica Camarotto.

segunda-feira, julho 10, 2006

Bom dia, Copacabana!

Ainda é manhã e sábado.
Bate saudade: há sol
em céu pleno, azul profundo.

Cheiro de flor
acende-me a lembrança de tanto,
tanto momento feliz por aí
e sempre.

À janela de Leste, o horizonte;
vôo para pousar aos teus olhos,
ao radar do teu sorriso.

Sou planta cerrado,
ar do Planalto; preciso
de cor e areia atlânticos.



Luiz de Aquino, em 07/julho/2006

domingo, julho 09, 2006

A nobreza anda nua...



Não contive o riso. Totalmente incontrolável, e felizmente posso fazer isso, pois não sou “autoridade constituída”. É que vivemos o tempo do “non sense” e da total ausência de discernimento. As pessoas têm a desfaçatez (leia-se “descaramento”) de dizer, afirmando, em público, coisas totalmente avessas aos fatos a ela relativos.

Na sexta-feira da semana passada, compareci à solenidade de inauguração do restauro da popularmente chamada Capela da Santa Casa, na Rua 4, centro de Goiânia. A Igreja, hoje, parece nota destoante do conjunto arquitetônico do Centro de Convenções; mas não é verdade, o Centro de Convenções é que destoa do templo católico, pois a igrejinha (ela parece pequena porque foi inserida, originalmente, num grande conjunto de construções; e continua pequena porque ao seu lado está o gigantesco complexo de teatro, auditórios e espaço de feiras).

Por volta de 1940, ela foi construída, integrada a um grande complexo: a Santa Casa de Misericórdia de Goiânia; e cerca de 40 anos depois, a Santa Casa foi demolida. O prefeito Íris, governador responsável pela demolição da Santa Casa, diz hoje, como disse com todas as letras de que dispõe, que foi surpreendido, no primeiro ano de seu governo (1983) com a notícia de que o grupo Eldorado, de São Paulo, comprara a Santa Casa para ali erigir um xópin. Ele intercedeu, tentou convencer os diretores da Sociedade São Vicente de Paulo de que aquilo seria uma agressão ao povo goianiense. E, resumindo, depois de afirmar que “os prédios da Santa Casa não suportavam mais reformas” (disse, sim; e são muitas as testemunhas, inclusive muitas “autoridades constituídas”; mas só eu ri), disse-se orgulhoso de ter salvado a igreja.

Bem, pelo visto, só eu vi que o rei estava nu.

Ouvi dizer que, na última quarta-feira, também o secretário Kleber Adorno postou-se de rei nu durante uma audiência pública na Câmara Municipal. Posso ter entendido errado, quem sabe? Mas o secretário da Cultura não admite, ainda, que a Justiça tenha anulado a Conferência de Cultura do ano passado, aquela em que foram distribuídas cédulas de mão em mão, com orientação de votos (pois é: até intelectuais votam por cabresto; haja vista as últimas eleições na Academia Goiana de Letras).

E aí, alguém suscita uma fala atribuída a Martin Luther King, o grande herói negro norte-americano assassinado pela intolerância racista da década de 1960: "O que mais preocupa não é nem o grito dos violentos, dos corruptos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons." Algo bem ao gosto do colega Rosenwal Ferreira, mas prefiro constatar o líder das massas negras. Entendo, sim, que há violentos, corruptos, desonestos, sem caráter e sem-ética gritando; mas os bons, meus amigos, não se calam; se se calam, não são bons, mas, sim, têm algo em expectativa e não há de ser lícito. Ou honesto.

Vou exemplificar: num dia desta semana, a Sônia, que presta serviços domésticos à minha cunhada há mais de dez anos, foi à padaria em frente; ao retornar, entrou no elevador “de serviços”. A propósito: a expressão “de serviços” pretende dizer “de serviçais”, isso faz parte do cinismo da classe dominante. Uma senhora muito bem vestida, supostamente mãe de uma moradora do prédio (Edifício Excelsior, na parte sul da Praça Tamandaré), exigiu de Sônia: “Você queira descer e deixar que eu suba antes”. A moça, que de boba não tem nada, retrucou: “Suba no outro elevador, madame (disse com ironia), porque eu estou com pressa” (toque de petulância da mestiça Sônia).

Como se vê, a soberba é tônus dos arrogantes; a alguns, o poder político permite mentir deslavadamente; a outros, o traje ou o patrimônio faz pensar que são superiores.

quinta-feira, julho 06, 2006

A espera

É assim, sempre. Ele nunca diz quando vem, promete quem não vai ficar muito tempo fora, mas sempre espero um mês, às vezes até mais. Mesmo assim eu gosto. Não fico sozinha de todo. Desde a Semana Santa, é a sexta vez que ele vem. De certa forma, até acho bom isso de não haver visitas mais amiúdes. Assim, posso contar os nossos encontros, lembrar-me de detalhes e datas de cada um deles. Tenho certeza de que nenhuma mulher com um homem ao lado pode se dar a um luxo desses. Aliás, as mulheres comuns, essas que estão casadinhas ou que têm muitos homens, as que têm um homem só e os vêem com freqüência, essas não têm o prazer que eu tenho: o de viver só, ser dona absoluta do meu tempo e do meu espaço, ter o meu homem quando o apetite é intolerável e, por isso mesmo, desfrutar dele com o máximo de mim.

É assim mesmo. Ele telefonou e daqui a pouco toca essa campainha. O carro, ele vai deixá-lo na esquina, de modo a não nos comprometer. Vem como quem não quer nada e discretamente toca a campainha. Eu vou abrir a porta e deixá-la encostada. No momento que ele entender seguro, vai se aproximar e entrar duma vez, com se fosse muito íntimo da casa.

Íntimo. Palavra curiosa, íntimo! E é ainda mais curioso notar – eu própria notar – que ele não é íntimo de minha casa. Ele é íntimo do meu corpo, explora-o como só ele o sabe: primeiro, no beijo silencioso, discreto e educado, mas nem por isso sem paixão. Ele me beija como se fosse sempre a primeira vez, entrega-se totalmente e com delicadeza sorve a saliva que consegue encontrar nos meus lábios e passeia devagar a língua em minha boca, até invadi-la toda e me fazer pensar que nos unimos totalmente e nos tornamos, num instante sublime, um ser, apenas. E devagar, tal como começou, ele se afasta alguns milímetros de mim, mas não o bastante para que eu não perceba na pele o calor de sua respiração. Nem percebo quando suas mãos começaram a passear da cintura para minhas nádegas e, quando sinto , já estou colada em seu corpo. Depois, ele faz com que minhas próprias vibrações acompanhem o ritmo das suas e não temos tempo para muito conversar enquanto não saímos do chuveiro.

Mas ele não é íntimo do meu lar. Ele nunca se encontrou com Renata, aqui. Minha filha sabe da existência dele – afinal, não é sempre que alguém vem aqui, e alguma ponta de cigarro perto da janela do quarto já foi notada por Renata. Ela nunca me perguntou quem esteve aqui... Minha filha é uma jóia! Em seus 15 anos, entende a vida de modo muito melhor que a grande maioria dos adultos. Um dia, ela me perguntou “mãe, você fumou?” e não insistiu em nova pergunta quando eu lhe disse não. Sei que ela não aprova o fato de eu me dizer viúva, de inventar um pai-marido que não existe mais, mas também não se interessa em conhecer Artur. Está certa, minha filha. Artur nunca quis saber da existência dela, embora soubesse que, ao fim de nossa relação de poucas semanas, eu estava grávida. Assim é Renata: conto-lhe minha (nossa) história desde seus primeiros anos de vida, e a cada vez acrescentando alguma coisa mais, de modo que, ao começo de sua adolescência, ela sabia em todos os detalhes que lhe diziam respeito tudo de sua vida, de sua origem.

Renata não faz perguntas. Foi ela mesma quem disse, dias atrás, quando eu atravessava uma dessas crises que me deixam atordoada: “Mãe, não consigo sentir falta de pai simplesmente porque nunca tive pai. Você me preenche, mãe, e isso é mais do que ter um pai que, sei lá, poderia estar aqui só para te atormentar ainda mais e me reprimir”.

Não é uma gracinha a minha menina?

Noutra ocasião, ela questionava a minha vida sexual. Não se conformava com o fato de eu atender ao telefone dizendo “aqui é dona Carmem”. Dona Carmem sou eu, claro. Renata acha que eu devo dizer “aqui é Carminha” e abrir-me para um diálogo. Dialogar com quem, se não conheço todo esse pessoal que liga para cá? “Mãe, você precisa arranjar um namorado”, diz ela. Eu reajo sempre, fechando a cara. Aos 33 anos, vivendo sem alguém para me patrulhar e tendo a companhia de uma filha tão terna e presente, isso já me é o bastante.

Bem, não quero ficar pensando em Renata agora. Ela saiu, foi a uma festa com a turminha, vai dormir em casa de amigas, tudo bem. Estou aqui, esperando Marcel. Nome bonito, Marcel. Lembra Paris. Meu maior sonho é conhecer Paris. Mas não quero ir só. Quero ir com Marcel. Seria uma verdadeira arte, nós dois em Paris, escondidos... Como ele explicaria, eu não sei. Aliás, eu sou mais feliz que ele, porque eu o divido com alguém, mas não estou dividida. Ele, sim. Ele se divide entre ela e eu. Coitado do Marcel!

Eu e Marcel em Paris! Gostaria que meu quarto em Paris tivesse uma vista da Torre Eifel, do Sena... Quem sabe de Notre-Dame? As figuras do livro de francês no ginásio eram lindas! Nós nem precisaríamos de música: eu me lembraria de todas as músicas que cabem em mim, em Paris e em Marcel e depois eu poderia morrer.


* * *


Marcel está demorando.

Ora, deve ser o trânsito. Nestes dias, véspera de Natal, o comércio aberto até tarde, fica um sufoco dirigir. Será que ele me traz uma rosa? Marcel é muito distraído, acho que nunca notou que tem uma floricultura ali na esquina. Ou será que ele não pensa em rosas? Ah, pensa sim! Ele é sensível, é poeta. Flor sempre lembra poesia. Marcel nunca me escreveu um poema. Ele prometeu, cretino! Coitado, ele não é cretino... é muito carinhoso, é meu parceirinho. Mas, então, por que não me faz uns versos? Quem beija como ele, abraça como ele e ama daquele jeito não pode ser tão desinteressado. Hoje eu vou lhe cobrar um poema, ora se vou!

Ei! Por que não pensei nisso antes? Vou surpreendê-lo.

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– Mãe! Acorda, mãe! Por favor... – era Renata. O sol já estava alto, inundava a sala e eu, toda bem vestida, esticada no sofá com uma rosa no peito.

– Por favor, mãe!

Levantei-me atordoada, querendo entender o que se passava. Demorei alguns minutos até compreender que já era outro dia, que Renata chegara e eu não recebera ninguém na véspera. A rosa que comprei ontem à noite para esperar Marcel estava aqui, apertada contra meu peito. Eu pensei que, presenteando-o com a rosa, ganharia meu poema.

– Que foi, mãe? Me conta, por favor! – insistia minha filha.

Olhei em silêncio para a rosa e, pela primeira vez na vida, senti pena de mim. Chorei em silêncio e, devagar, aceitei o ombro de Renata, que chorou comigo.


(do livro "A noite dormiu mais cedo". Goiânia, Agepel, 2002).

segunda-feira, julho 03, 2006

Foi à Lua

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Sob a Lua, senti-me cônscio
das paixões e alvo certeiro
dos olhares de fêmeas sedentas:


presa de ansiosas damas,
caça de vorazes sereias,
mirado de dianas, as de sempre.


Foi à Lua. Sob ela, senti-me homem
em meados de adolescência. Feito a noite,
era negra a pele da mulher mistério.


Em seu rosto, feito olhos
brilhavam duas as luas cheias
da minha vez primeira.