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domingo, abril 08, 2007

Autógrafos no sebo


Autógrafos no sebo

Devolva o Neruda que você me tomou / E nunca leu”.
Chico Buarque, in “Trocando em miúdos”.

Presentear meu pai sempre foi muito complicado. É que não vale, no caso dele, imaginarmos o que lhe seja útil, pois o que ganha por carinho é guardado com a mesma embalagem. Por isso, as “sete chaves” do zelo. Aprendi isso com meu velho e costumo preservar os presentes que ganho, exceto aqueles que devem mesmo ser usados. Livros, por exemplo, sempre foram objetos de minha guarda zelosa, mas nem por isso deixei de ser roubado, há mais de trinta anos, e perdi, então, minha pequena biblioteca de Literatura e compêndios de boa Geografia (as maiúsculas são apenas para enfatizar).

Tenho carinho especial para com os livros autografados. Eles, além do valor que lhes é inerente, significam um momento importante: o meu encontro com o autor, seja um encontro real ou o pensamento voltado a mim por quem o postou numa agência de correio, lá longe... Com isso, e após a perda, em 1972, daqueles livros da infância, adolescência e mocidade, fui reconstruindo minha estante; o que se foi naquela primeira, ocupa hoje vários espaços no meu pequeno apartamento e ainda na casa de meu pai, em Caldas Novas, pois aos livros costumo juntar também meus recortes de jornais.

Imagino, desde sempre, que todo escritor, sendo bibliófilo por derivação de ofício, não se desfaz de livros. Conservo comigo até mesmo aqueles que não consigo ler por qualquer razão, como os dois volumes que um judeu ortodoxo me pôs nas mãos quando chegamos (escribas latino-americanos e eu) ao Muro das Lamentações. São livros de cânticos festivos hebraicos, naturalmente em caracteres da escrita judaica, ininteligíveis para mim, segundo nosso guia Yousef Arad: “Para que levar esse peso? Largue-os por aí”, aconselhou-me ele. Respondi que não: afinal o estranho judeu me presenteou com eles, e eles estão aqui, na estante.

Um poeta desta terrinha do pequi, porém, despoja-se facilmente dos livros que recebe de autores locais; vai ver, ele vislumbra em cada um de nós um poeta menor (que ele), e desova nossas obras, ainda que autografadas, nas livrarias de sebo. Lembro-me de ter adquirido vários livros de autores locais dedicados a ele; via-os nos sebos, comprava-os e presenteava os autores. Num dado momento de sua vida, e suponho que após duas crônicas (uma de Leda Selma; a outra, minha) sobre o assunto, o poeta passou a cortar a página de autógrafo antes de remeter às lojas de revenda os livros... indesejáveis.

Há poucos dias, o escritor e acadêmico Luiz Augusto Sampaio presenteou-me com a notícia: comprou, num sebo, livro meu já esgotado; já em casa, ao abrir a peça, deu-se com o autógrafo ao poeta. Luiz Sampaio contou-me o fato, mas omitiu, cavalheirescamente, o nome do poeta. Não precisava; adivinhei-o sem esforço e lhe contei histórias iguais, com outros personagens. Detalhei: a biblioteca do poetinha tem, ainda, o mesmo tamanho de 1977; ou tinha, até os idos de 1990, pois desde então nunca mais o visitei.

Falávamos disso quando nos chega uma colega, poetisa; ouvindo-nos, e sem saber que falávamos do mesmo poeta, ela ilustrou com sua história: havia enviado seu novo livro ao poeta X, devidamente autografado e, dentro, uma cartinha em que exaltava sua admiração ao destinatário e lhe pedia conselhos sobre o ofício do verso. O desfecho não foi diferente: ela própria encontrou seu livro, com o autógrafo recortado rente à lombada; mas a cartinha estava lá, sem ter sido encontrada.

9 comentários:

Anônimo disse...

Luiz querido,
Realmente fantástico seu texto. Mesmo porque é exatamente isso que penso sobre obras que encontro no sebo. Uma tristeza que alguém se desfaça de um livro ainda mais autografado com amor e carinho.
Como sempre suas crônicas seduzem ao mesmo tempo que são reais, objetivas.
Beijos
Vânia Moreira Diniz

Deolinda disse...

Dá o que pensar esse "poetinha", mas, escritores e poetas por que não enviam as obras para as escolas públicas? Quem sabe serão lidas, invés de tornarem-se moedas para tal "poetinha".

Anônimo disse...

Meu caro Luiz

Passei bons momnetos nestas manhã de Páscoa, deliciando-me com seus textos.
Um fraterno abraço.
Paulo Bártholo

Madalena Barranco disse...

Oh, Luiz, em nossa bagagem para a grande viagem, apenas levamos as letras dos livros e também dos belos amores e amigos... Por isso preservar os livros com o respeito que merecem é um ato de nobreza. Beijos - parabéns pela defesa dos poetas descartados...

Anônimo disse...

Caro Luiz de Aquino:

Feliz Páscoa!

Muito obrigado pela mensagem. Também sou admirador do Dr. Fausto Valle, que, além de tudo isso que Você menciona, é um Grande maçom, dos mais ilustres, cultos e queridos deste Centro-Oeste. Gostei do poema.
Confesso minha ignorância quanto ao Fernando Quintela; mas achei ótima a sua crônica.
E a sua, sobre livros, está também excelente, inclusive, com situações freqüentemente vividas pelos que gostamos de livros e literatura...

BOA SORTE, sempre!

Abraços, Olavo (Goiatuba, GO).

Anônimo disse...

"Autógrafos no sebo"
Luiz, seu texto é muito bom, parabéns, você está a cada dia
melhor.É realmente lastimável que leitores não saibam valorizar um livro autografado, imagino que não
são dotados de sentimentos, já que o momento de um autógrafo é único, mágico e alguns carregados de fortes emoções e belas recordações.
Agora, quanto ao "poeta" que vende livros autografados, com certeza é antiético e tem no lugar dos neurônios nada mais e nada menos do que sebo.

Beijo,
Lêida Gomes.

Herondes Cezar disse...

Grande cronista Luiz,
Eu, que só publiquei um livreto, sinto-me frustrado porque, até a última vez que pesquisei na internet, ainda não havia nenhum exemplar dele nos sebos do país. Por isso, não entendo como certos autores que conheço pesquisam exatamente para comprar os exemplares de suas obras que caem nos sebos. Os sebos prestam um grande serviço à cultura. Já garimpei preciosidades em sebos. Hoje, os sebos têm de tudo, felizmente, e mais um pouco. Em Brasília existe uma importante entidade, T-Bone, que empresta livros doados. No começo, era um simples açougue, cujo dono resolveu receber doações de livros para emprestá-los a quem os quisesse ler. Mas o que eu quero lhe dizer é outra coisa. Uma vez, há uns dez, 15 anos, eu topei com um livro no sebo, aqui em Brasília, que não comprei, porque tinha um exemplar da mesma edição, mas me arrependi muito de não tê-lo comprado. Era o livro Introdução ao Cinema Brasileiro, de Alex Viany, primeira edição, 1959, com uma encadernação valiosa. O autógrafo dizia: "Para Milton Gonçalves, carioca com sotaque do Brás". Curioso é que, se Milton Gonçalves for o nosso grande ator, como suponho, ele é mineiro de Monte Santo. Daria uma crônica, não?
Grande abraço do fã
Herondes

Anônimo disse...

Aquino, só hoje li sua crônica do DM e ela me transmitiu uma mistura de sentimentos, onde passeei entre o cômico, a indignação e resignação.
Cômico, porque imagino como foi engraçado descobrir que também fora vítima do “famigerado poeteiro” (vamos usar essa expressão, pois aquele “alguém” não tem sensibilidade suficiente para o título de poeta).
Indignação, porque o poeteiro levou os livros regionais ao sebo e os trocou por outros, provavelmente da literatura “de fora”, por imaginar que são melhores que os daqui.
Resignação, porque parece impossível acabar com o rótulo pejorativo de “escritor goiano”, enquanto se esquece que a literatura é universal, una e indivisível.
Esse poeteiro de meia-pataca, no fundo, se esquece que ele próprio é rotulado de “escritor goiano” e, quem sabe por isso mesmo, deteste tanto seus colegas daqui, pois estes trazem lembranças do regionalismo.
A culpa pela existência de situação desagradável como essa, no fundo, é nossa mesmo, que somos carentes da existência de velhos caciques regionais ainda vivos, pessoas com que pudéssemos trocar experiência e ouvir conselhos. Na falta desses baluartes da literatura, vamos beber água em fonte salobra, crendo que se trata de manancial cristalino, mas que, no fundo, nos dão uma grande ressaca moral ao final. E olha que falo isso de experiência própria.
Gostei da sua crônica. E gostei também dessa sua nova fase “comportadinho”, sem dar nome aos bois.
Abração,
Adriano Curado.

Anônimo disse...

A empáfia é um substantivo feio até no nome! Sua escrita lembra logo o significado: "soberba, orgulho vão". Ao ler o texto "Autógrafos no Sebo" logo se percebe que há um "empafioso" citado por Luiz! Não um soberbo que a tudo e a todos menospreza, mas um "poetinha" que imagina galgar os mais altos patamares literários. Um autor que despreza outro assina a própria decadência e a incapacidade de aprender com o que o outro faz. O texto nos leva a várias reflexões, além das que já mencionei. A vontade de manter os ensinamentos repassados pelo pai, fez com que Luiz procurasse seguir "ipsis litteris" o cuidado do pai com os presentes ganhados. Percebo, então, o quanto os valores familiares e a conservaçao da memória se fazem sempre inerentes nas linhas geridas pelo cronista. Além disso, há um relato - como no último parágrafo - que me fez lembrar das "Conferências do Cassino Lisbonense", tão profícuas à época do Realismo em Portugal... Bom texto! Sabendo o leitor interpretá-lo, frutos serão colhidos dos implícitos textuais...

Luciano Gonzaga (Ceres - GO) 15/04/2007