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sexta-feira, outubro 03, 2008

"A alma encantada das ruas"

"A alma encantada das ruas"



Há cem anos, pontificava no Rio de Janeiro um dos maiores cronistas brasileiros de todos os tempos: João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos, ou, como era conhecido, João do Rio. É ele o autor de "A alma encantada das ruas", dentre outros vinte e cinco livros. João do Rio viveu apenas 40 anos (1881/1921), mas o bastante para viver intensamente e ser eleito, aos 29 anos, para a Academia Brasileira de Letras.
Não diria que "A alma encantada das ruas" seja o seu melhor livro, nem o mais importante. Escolhi-o para enfatizar a atividade literária em que o jornalista mais se destacou – a de cronista. Seu contemporâneo Lima Barreto teve, literalmente, uma vida literária paralela à dele: 1881/1922. João, que era mulato, teve uma vida mais afortunada que a de Lima, cujo pai, João Henrique de Lima Barreto, nasceu escravo. Mas a razão da minha escolha não é sequer preferência entre os dois grandes escritores cariocas. O critério está apenas na crônica. E, muito especialmente, no modo como João do Rio escolhia os temas de suas crônicas: ele, efetivamente, buscava encontrar "a alma das ruas"; ou melhor, "a alma encantada das ruas".
Duvido muito que qualquer cronista pós-João não faça o mesmo. Aliás, estou dizendo besteiras. Não preciso dobrar a esquina para localizar, em Goiânia ou em Torixoréu, em Fortaleza ou em Passo Fundo, cronista que escreva sobre o seu próprio umbigo. Algo de errado nisso? Não, absolutamente: o escriba escolhe sobre o que escrever, ninguém tem o menor direito de lhe impor o contrário. O que vale mesmo é como escrever. É escrever de modo a envolver o leitor e conduzi-lo à última palavra. Então, seja qual for o tema, se o cronista for ruim, não haverá assunto que o faça grande; e se for bom, poderá escrever sobre um botão de dois ou de quatro furos, e conseguirá envolver e divertir seu leitor "até a última palavra".
Gostaria muito, eu, de ser um bom seguidor de João Paulo. Li, em sua biografia, que estudou no Colégio Pedro II, na década de 1890, tempo em que a República, ainda infante, mudou o nome do colégio do Imperador para "Ginásio Nacional", por razões óbvias. Foi jornalista, naturalmente. E eu, que gosto de ver reconhecidos os verdadeiros valores, estranho muito que seus textos não sejam estudados nos cursos de Letras e de Jornalismo em todo o país. Acredito, mesmo, que hoje, quando tanto se fala em "jornalismo literário", o espaço já esteja aberto. Porque não há como omitir a qualidade literária do imortal João do Rio.
Foi pensando nele que observei, na manhã desta quinta-feira, uma senhora mal entrada nos trinta anos a caminhar na minha rua, em animada conversa com a filha pré-adolescente. Mulher simples e bela, sem ornamento algum, usando uma minúscula camiseta que lhe deixou à mostra a cintura bem torneada, enquanto a calça em brim mescla (que a gente hoje chama de "jeans") bem justa, a barra (ou bainha) no joelho. Mas o cós da calça, este, como ainda é da moda, não está na cintura, mas, sim na linha onde os obstetras fazem o corte da cesariana.
Imaginei o que escreveria João do Rio diante daquele corpo moço e deformado. É que a cintura já tem o estreitamento que tanto encanta, como a silhueta de um pilão. Mas o sutiã apertado forma uma cintura centímetros acima daquela natural, a da linha do umbigo. E a moda das calças de cós baixos impõe mais uma, dividindo o volume dos quadris em dois hemisférios amorfos, sem a simetria que agrada aos olhos (para os bem aquinhoados, ao tato também).
Não sei se o cronista de cem anos passados atentaria para outro detalhe... Ah, certamente que sim! Refiro-me aos indefectíveis pelos do baixo ventre, estes que, com a moda em voga, exigem ações amiúdes de um novo tipo de profissional – as depiladoras dos salões de beleza. A esse propósito, ouvi do meu amigo Marcelinho Pão e Vinho, delegado de uma pequena e pacata cidade do interior de Goiás:
– Elas, essas moças, deviam ser enquadradas em crime ambiental.
A observação intriga-me:
– Desde quando, pergunto-lhe eu, uma simples depilação íntima vem a ser crime ambiental, siô?
E ele, impassível:
– Estão devastando o cerradinho.



4 comentários:

Anônimo disse...

Lima Barreto não nasceu escravo, de onde o amigo tirou isso ?

Luiz de Aquino disse...

Obrigado por notar! Eu havia pulado uma linha, a correção já está feita: seu pai, João Henrique, é que nasceu escravo.
Meu agradecimento fica incompleto porque o amigo não se identificou, mas renovo-o, de coração.

Madalena Barranco disse...

Luiz, querido,

Rsrsrsr! Você foi bem espirituoso e eu tenho que concordar com você... Eca, que moda horrorosa!

Quanto às crônicas, essas sim são algo difícil de construir, porque além de escritor o cronista precisa ser mago para capturar a magia do dia-a-dia e quebrar a rotina.

Beijos.

Ana Cárita disse...

Oi, Luiz!

Estive lendo sua crônica "A Alma Encantada das Ruas"
que belezura!
É isso mesmo, João do Rio certamente desaprova a poda do cerradinho
que provoca derrubada dos paus. Quá, quá!

Quanto à Alma Encantada das Ruas, realmente é um livro muito interessante,
retrata o cotidiano das ruas com beleza, naturalidade e um toque de romantismo.
Deveriam (as faculdades) dar mais atenção a esta obra.

Abração da
Aninha