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sábado, dezembro 13, 2008

A raça da tragédia

Por Raul Longo

A RAÇA DA TRAGÉDIA

                                               Raul Longo

(Poucos dias depois de contar de como me deparei com o Olho da Tragédia, descubro que no Brasil ela também tem raça)

 

Apesar de todos os envolvimentos espúrios dos tucanos e seus apoiadores em negociatas como as do caso Alston... Apesar da decadência dos serviços públicos dos governos de São Paulo, como na educação... Apesar da espoliação à população daquele estado, como nas exorbitantes tarifas de pedágio... Apesar do desmascaramento de manobras como a do Gilmar Mendes a mobilizar tempo e recursos públicos de organismos policiais para investigação de grampeamentos inventados... Apesar do desenvolvimento do crime organizado nas gestões tucanas de São Paulo... Apesar dos escândalos de corrupção e da truculência policial contra os movimentos sociais do Rio Grande do Sul... Apesar do desrespeito à liberdade de imprensa em Minas Gerais... Apesar de cassado por impropriedade administrativa o governo da Paraíba... Apesar da guerra campal da polícia paulista... Apesar de tantos e tão amiúdes pesares, corremos sérios riscos de, em 2010, regredirmos à mesma vergonhosa e alarmante situação em que o país se encontrava até 2002.

 

Espantaremos o mundo, incompreensivelmente retrocedendo após tantas evoluções nunca experimentadas em nossa história sócio/econômica e política. Mas mesmo sendo resgatados de uma das maiores dívidas internacionais... Mesmo contendo efetivamente uma histórica inflação crônica... Mesmo sendo alçados da situação de um dos maiores riscos de mercado do mundo, para uma posição de economia promissora e liderança política no hemisfério... Mesmo tendo promovido exemplares programas de inclusões sociais... Mesmo desenvolvendo obras de infra-estrutura por todo o país... Mesmo nos destacando como uma das economias menos afetadas pela crise mundial... Mesmo com todo o reconhecimento internacional ao atual governo e com aprovação popular jamais igualada por qualquer outra liderança política da história do país; nos expomos seriamente a possibilidade de, em 2010, devolvermos o país àquelas elites que ao longo de 5 séculos representaram exatamente o contrário disso tudo.

 

E que não se venha, depois, culpar a mídia. Não se venha dizer que o brasileiro foi condicionado pela mídia. Resultados das últimas pesquisas de antemão comprovam que a desculpa é esfarrapada, e se destaca no desespero de uma Cristina Lobo indignada e gritando pela Globo News seu espanto perante o fato de a crise não ter colado no Lula apesar dos ingentes esforços de seus colegas e dela própria.

 

Passaremos pela vergonha de não eleger o sucessor do Lula com Lula tendo o maior recorde de aprovação de governo da história, como passamos pela vergonha de não eleger Marta Suplicy com o Kassab detendo o recorde de desaprovação em administração municipal em São Paulo, no início do ano em que se reelegeu.

 

Erros crassos na campanha de Marta houve, mas o que de fato explica o fenômeno da inversão de tendência de voto é que nada ainda se inverteu na sociedade brasileira. Somos a mesma sociedade racista, preconceituosa, estúpida, e antidemocrática que elegia arquétipos da corrupção, da truculência, da falta de civilidade e espírito público como Fernando Collor, ACM, Bornhausen ou Maluf.

 

Não mudamos em nada, porque nada foi feito para nos mudar. A comprovação disto está em que apesar do Presidente Lula ter afirmado com toda clareza que não faz o que quer, mas sim o que a sociedade manifeste como desejo de que faça; não fomos capazes de mobilizar a sociedade brasileira para manifestação alguma.

 

Tudo o que o governo Lula tem obtido de avanço e benefícios sociais para o brasileiro, resulta de esforços do próprio governo. Esforços muitas vezes confrontados não apenas pela mídia, mas pelos demais poderes; o legislativo, o judiciário e o das forças armadas, como no caso do General Heleno e a reserva Raposa do Sol.

 

Os índios de Roraima se organizaram e estiveram presentes na luta por seus interesses, mas quando fomos capazes de mobilizar manifestações contra legisladores que votam em apoio às matérias contrárias aos interesses populares? Quando nos mobilizamos contra os julgamentos em favor de interesses exclusivos de minorias da elite?

 

É-nos impossível mobilizar a sociedade brasileira porque somos incapazes, ou não sabemos, ou não queremos, ou não temos consciência da oportunidade única de mudança do processo histórico sócio/político, ocorrido com a eleição de um emigrante operário à presidência da república.

 

A eleição de um operário emigrante à presidência de um país que concentra uma das mais racistas, preconceituosas e retrógradas sociedades do mundo, sem dúvida é fato extremamente progressista. Mas afora a eleição de Lula, continuamos sendo a mesma sociedade com aspirações mesquinhas e pequeno-burguesas.

 

E isso inclusive entre os segmentos políticos de uma esquerda que se pretende revolucionária, mas não consegue transpor cortinas teóricas e meramente discursivas. Não consegue sequer atravessar a rua para, abandonando o conforto e a elegância de seus acentos, acocorar-se ao lado daquele trabalhador que no acúmulo de urgências pela sobrevivência não tem condições de adquirir informações e conhecimentos para uma compreensão democrática de seu próprio meio e realidade.

 

E assim corremos o sério risco de em 2010 ajudarmos a eleger um inapto ou um crápula, apenas pelo fato de ser homem. Ou de não eleger uma das principais responsáveis por todas as situações positivas que hoje ocorrem no país, apenas porque é uma mulher.

 

Claro que assim como na campanha de Marta Suplicy, lá por meados de 2010 levantaremos bandeiras, vestiremos camisetas vermelhas, penduraremos faixas nas portas de nossas casas pequeno-burguesas e como bons pequeno-burgueses defenderemos nossas convicções pretensamente libertárias em confortáveis conversas de família e bate-papos de botecos. Daremos nossa contribuição à causa pelos teclados e écran dos monitores da internet, mantendo nossas performances revolucionárias.

 

O problema é que uma sociedade não se democratiza por eleições, e muito menos em vésperas de eleições. O processo de democratização de uma sociedade se desenvolve através de relações verdadeiramente democráticas e cotidianas, onde não cabem malabarismos e exibições intelectualeiras.

 

Se para uma sociedade tão atrasada e antidemocrática quanto à brasileira, a experiência de eleger um emigrante operário foi um enorme avanço obtido pela profunda decepção com os produtos da mídia e falsas sabedorias de mascates de placebos milagreiros; eleger uma mulher (uma dona!) para dirigir o país, será tão difícil quanto aceitar que a maioria dos acidentes automobilísticos seja provocada por motoristas homens. Apesar dessa evidência corriqueira, quantos machos brasileiros concordam com tal realidade? Apesar de que os dados demonstram que a maioria dos arrimos de família é do sexo feminino, qual homem se sujeita à orientação feminina, ou a se considerar dependente de sua companheira?

 

Alguma dúvida de que ainda somos pequenos e mesquinhos para nos afetarmos por tão primários preconceitos? Alguma dúvida de que ainda não nos democratizamos um milímetro a mais do que o que não éramos desde a colonização do país?

 

Vejam esses dois parágrafos comentando as imagens dos trágicos acontecimentos de Sta. Catarina , transmitidas pela TV, orgulhosamente divulgados pela destinatária da missiva:

 

“... vi também os pobres mais bonitos do Brasil, gente que tem uma formação diferente, uma cultura de trabalho e de respeito aos vizinhos, pessoas que se ajudam como podem”

“... é um povo, uma raça que infelizmente não é a predominante neste país e em outra reportagem da Record se mostrou as pessoas nas praças jogando cartas, batendo papo, por que tinham o bolsa família e não precisavam mais trabalhar!!!, este é o nosso país”

 

Apenas corrigi alguns erros ortográficos, mas não mudei uma palavra do que aí está expresso e dispensa qualquer comentário. Apenas me permito cogitar se o conteúdo da matéria da Record seria o mesmo caso, ao invés da exigência de filhos na escola, a condição para o benefício fosse o desconto do dízimo para a igreja do Edir Macedo. Ou será que ainda assim o divino olho eletrônico da classe média -- tão complacente com as Bolsas Riquezas concedidas pelo Proer aos fraudulentos, aos especuladores, e a agiotagem recompensada com luxuriosos lazeres -- estaria atento aos imperdoáveis momentos de relaxamento em praças públicas, numa clara incontinência aos cento e pouco reais de cobertura do Bolsa Família? 

 

Afora ter se revelado paulista, não tenho qualquer outra informação do severo fiscal do ócio das raças inferiores, mas a correspondente conheci como militante do PT.

 

Também me isento de comentar o parágrafo seguinte de um manifesto divulgado pela internet e assinado comoidéia de Caio Alexandre Wolff, Advogado blumenauense”:

 

Enterrados os mortos, temos que cuidar dos vivos. 
A economia do vale foi atingida de forma duríssima e os prejuízos certamente serão agravados pelo desemprego e a pobreza vindouras nos próximos meses. A solução é fazer a economia girar, para que as empresas mantenham os empregos e cada um possa reconstruir sua vida a partir de seu próprio trabalho. Sugestão: comprem roupas da Hering, cervejas da Eisenbahn, fraldas da Cremer, camisas da Dudalina, condimentos da Hemmer, toalhas da Teka, Karsten, Artex, refrigerantes Thon e tantos outros produtos ligados à nossa região.”

 

Cada qual que conclua por si as motivações desse "tragic-marketing". A mim apenas ecoa nas paredes do labirinto da memória um antigo poema musical: “nos joelhos uma criança sorridente, feia e morta estende a mão... Enquanto os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis”. Ao mesmo tempo, uma voz tenta me convencer serem casos isolados, perdidos entre os 10% dos insatisfeitos com o governo LulaMas há uma pergunta insistente, qual era o índice de aprovação ao Kassab ainda no começo deste ano?

 

E uma certeza me cala: a de que no país dos coronéis da indústria da seca ou das enchentes e desmoronamentos, não será um governo ou um presidente que promoverá a democratização da sociedade. Muito menos bandeiras, bonés e camisetas de vésperas de eleições. Sequer os discursos de botecos, ou as filosofices de internet.

 

Nem sei porque tudo me parece tão relacionado... um pouco por concordar com as decepções do meu amigo Castor com o burocratismo da militância da esquerda pequeno-burguesa, outro pouco pela tristeza de minha amiga Urda Klueger, desabrigada de Blumenau, e também pelas vítimas do Césio em Goiás, de 1987, lembradas em crônica de meu amigo Luiz Aquino. Mas como o próprio Luiz conclui: ali, como na seca do nordeste, não eram loirinhos de olhos azuis. É tragédia também, mas de outra raça.

 

Qual a diferença? Algo como o comovente seqüestro daquele jovem soldado judeu, e os revoltantes moleques palestinos a jogar pedras nos tanques israelenses. 

 

Somos todos cristãos, é verdade! Mas se até Cristo tinha olhos azuis, como haveremos de nos comover com os negrinhos esquálidos da África, se somos a sociedade das diferenças? E isso de mulher, só fica bem como rainha da Inglaterra. Afinal, the Queen, she's the queen. 

Raul Longo
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