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quinta-feira, julho 29, 2010

Amor não espanca

Amor não espanca


Atrás da porta do quarto dos meus pais, naquela primeira metade da década de 1950, ficava dependurado, ameaçador, um cinto masculino em tom de caramelo, as bordas ornadas de uma tira fina. A ameaça era constante:
– Se fizer alguma coisa errada, seu pai vai “corrigi-lo” com esse “currião”.
Anos mais tarde, entendi que “currião” seria um aumentativo para correia. Pois bem! Ou, melhor: pois mal! Era o primeiro dia de aula de 1951, eu tinha cinco anos e poucos meses. O ano anterior foi o meu primeiro na escola e já lia e escrevia desde abril, isto é, eram dez ou onze meses de prática na leitura de frases bobinhas, que eu então já substituía, por iniciativa própria, por gibis. Decidi, sem consultar ninguém, que iria estudar no Grupo Escolar, e não na Escolinha Dona Vanda. Queria ser aluno da madrinha Dorinha, irmã de Dona Vanda.
Contrariando-me, Dona Lilita, muito brava, decidira o contrário e mandou-me para a mesma escolinha. Matei aula. E fui convencido a continuar na Escolinha, pela primeira e única surra em que aquele cinto se mostrou poderoso nas mãos de meu pai (espero que ele ainda se arrependa de ter deixado marcas em minhas pequeninas coxas por mais de uma semana).

Surras de palmadas ou chineladas, jamais, porém um tapa fora da região glútea; puxões de orelhas, castigos de privações e outras medidas menos agressivas não me faltaram. Eventualmente, um beliscão no braço, mas nem isso era-me necessário: uma repreensão sempre significou um castigo enorme para mim. E digam-me: quem, dentre as crianças daqueles tempos, viveu livre dos castigos físicos? Raríssimos!
Quando nos tornamos pais, aplicamos, em escala bem menor, o mesmo procedimento. A formação acadêmica, de educador, ensinou, a mim e a alguns milhares de brasileiros, que é possível educar sem espancar. E foi na Universidade Católica, ainda na década de 1960, que soube do método (podemos dizer assim?) indígena de jamais repreender uma criança, mas acompanhá-la sempre, ensinando práticas e prevenindo-as quanto aos perigos. A Católica era, entre nós, a universidade dos jesuítas, e soube também que castigar crianças era uma prática desses padres, coisa que espantava os índios catequisados por eles.





Em Pirenópolis, na Venda do Bento – o restaurante e museu de Altamir Mendonça – existem vários objetos que refletem bem a vida no cerrado. No Instituto de Trópico Sub-úmido, da PUC de Goiás, há também um museu assim. Em ambos, a palmatória é um instrumento que chama as atenções dos visitantes e de que alguns vetustos senhores e senhoras ainda se lembram (e de que os mais jovens ouviram falar).


 A palmatória de furinhos não era mais instrumento pedagógico no meu tempo, mas uma ripa de madeira densa, com 40 cm de longa, foi usada para me dar um violento bolo sobre a mão direita. Justo a palma em que naqueles dias cicatrizava um ferimento de cuja causa  me esqueci.

Meus primeiros filhos eram “corrigidos” com castigos físicos. Mas sei bem o quanto me incomoda o remorso. O mais válido é o método do castigo de privações. De que adianta repreender com violência e humilhação para, em seguida, sob remorso, premiar com futilidades, o que só servem para deseducar ainda mais?

E aí, chega-nos a Lei da Palmada. É isso mesmo? Não, deve ser engano. Palmada é um tapinha, um só, na bundinha, para assustar a criança e mostrar quem manda. Isso não é castigo físico, é um susto, e é para essa palmada que vale o velho provérbio (que cansei de ouvir, naquele tempo): “Pata da galo não mata pinto”. Mas coice de padrasto e madrasta, sim. E são muitos os pais padrastos, infelizmente!

Voltado à universidade (à do meu tempo), recordo a professora de Psicologia da Educação a definir que o processo de aprendizagem nunca se acaba. Concordo, e o faço mais a cada dia. Não precisei de lei alguma para me convencer de que surras são perfeitamente dispensáveis, ou melhor ainda, contra-indicadas. Outro aprendizado na UCG dos meus tempos: autoridade é conhecimento. E filhos aprendem facilmente que isso é verdade. O indicativo de avaliação, nesse caso, é o quanto os filhos imitam os pais.
A lei da palmada, para mim, é tão inócua quanto à lei do desarmamento. Não se mudam hábitos por decreto, e as ditaduras sabem disso (todas elas). É preciso mudar hábitos, e isso só se faz com boa educação. Mas agimos sob equívocos: as leis exigem diplomas para que eduquemos filhos dos outros, mas não exigem que saibamos educar para que tenhamos filhos.



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Luiz de Aquino é escritor, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com. 

quinta-feira, julho 22, 2010

Luar sobre ruas tortas




Luar sobre ruas tortas
L.deA.

Gosto de poemas em livrinhos. Ou de livrinhos de poemas. Se o volume for de autor conhecido, a gente já o abre com a consciência do sabor a degustar; se não, concluirá rapidamente se valerá ou não a pena percorrer cada página. Livrões de poemas, só quando já sabemos bem o modo como nossos sentidos e sentimentos acolherão seu conteúdo.



Existem muitos modos de se conceber um poema. Imaginem, leitores, os muitos modos vezes mil de se conceber um livro de poemas. Um deles – eu sei, já o vivi – é palmilhar as pedras dos caminhos de Pirenópolis. Ou da Cidade de Goiás, de Jaraguá, Corumbá, Santa Luzia, Pilar, Bonfim. Se deixarmos Goiás, temos Ouro Preto e Mariana, Salvador, Recife, João Pessoa... Lugares de onde extrair História no percurso das ruas.


Há pouco mais de um século, Machado percorria o Rio e colheu das décadas e das ruas o feitio (ou feitiço) de seus poemas, contos e romances. João do Rio ensaiou sobre a influência das ruas em seus tipos (ou terá sido o contrário? Os tipos humanos são frutos das ruas em que vivem, ou emprestam suas essências para constituir “a alma encantadora das ruas”?).

Sei que as ruas – sobretudo as ruas de pedras, aquelas concebidas para se andar a pé ou, para os de maiores posses, em cabriolés e landaus tracionados por vistosos cavalos – têm o poder de induzir poesia e sons de canções. Especialmente quando se faz noite.

A noite sugere serenata. Serenata é a magia do ócio regado a “espírito” e enternecido por sons de semínimas e colcheias, de acordes e vibratos. Serenata é um modo solene e fácil de se vencer a timidez e declarar à amada o que se nos anda pela alma quando a alma se acha encantada de amor e esperanças muitas.



Cassiano Ricardo escreveu um minúsculo poema chamado Serenata Sintética, e não sei de outro título a ser tão bem traduzido: “Lua morta / Rua torta / Tua porta”. Esses restritos três versos variam apenas na inicial de cada uma das duas palavras que forma cada um deles, mas que universo!... Trocadilho quase que perfeito, este! Três versos a fazer universo, como se nos bastasse apenas um...

Lua morta... Morta? Dizia a ciência de antes, mas o que é a vida de um astro do Cosmo? Basta estar no céu, existir, e por se mostrar todas as noites de forma mutante sugere vida, sim!

Rua torta, a Rua Direita de qualquer cidade colonial... Por que Direitas, tais ruas? Evidência de que o perfeito não é, necessariamente, retilíneo.

Tua porta. Porta? Pode ser a janela, sim! Altas janelas em casarões de estilo, guilhotinas vidraçadas ou folhas de par a abrirem-se como o coração da amada... Uma luz mortiça insinua o sono repousante, interrompido com a delicadeza de alguém enamorado... A serenata tinha a função mágica da busca das bênçãos. Era um modo tímido e poético de se anunciar para o futuro.

Ah, as serenatas! Muita saudade... As ruas são as mesmas, as que ganharam alma quando o nome era ainda Meia-Ponte. Mas corria meio século quando nasci, em Caldas Novas, e nasci ouvindo canções meia-pontenses (ou pirenopolinas) de serenatas, em sons de cordas doces de violão, ou trinados líricos de bandolim. A primeira realização foi cantar em serenata em Pirenópolis. Meu avô Luiz de Aquino liderava: tio (e padrinho) Ismael adornava a noite com sua clarineta, tio Zeco harmonizava com o cavaquinho. Não podia faltar Bidoro, exímio violonista!


Esses, e muitos outros parentes e amigos, instrumentistas e cantores, foram-se. Restam-nos, para a voz, as tias Jerusa e Luizinha, e os violões de Luiz Antônio e Zé de Catirina. Certamente, outros estarão com eles, nessa sexta-feira, dia 30. Por coincidência, nesse dia, meu pai completa 88 aninhos. Estou absolutamente certo de que ele estará também nesse conjunto de seresteiros. Afinal, como não reviver uma serenata sobre ruas tortas, sob a lua morta e em busca de algumas portas?
Meu pai: mais de 80 anos de serenatas...

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Luiz de Aquino é escritor, membro da Academia Goiana de Letras.


-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com. Blog: 







Amigos,


Leiam também a belíssima crônica de Aliene Coutinho sobre Pirenópolis (irresistível convite para se conhecer a cidade): 


http://pbondaczuk.blogspot.com/2010/07/piri-e-ali-por-aliene-coutinho-u-m.html?

sexta-feira, julho 16, 2010

Autoridades, ídolos e mídia

Autoridades, ídolos e mídia


L.deA.



Fé pública. Imagem pública. Autoridade. Ídolos sem essência.


Que tempos, hem? Enquanto a nação de chuteiras vislumbra em telas de plasma, LCD ou LED as cores vivas da alegria africana, exaltando a ênfase em amarelo-ouro que veste os tórax dos mestiços brasileiros em busca do sexto título mundial, uns raros mequetrefes com poses de poder atuam contra a vida.

Atenção, Brasil! O DENATRAN (ou o CONTRAN) resolveu que os agentes de trânsito não precisam parar condutores para notificá-los sobre infrações cometidas, basta anotar e mandar o boleto pelo correio – afinal, os agentes de trânsito têm fé pública. Desde então, a expressão “fé pública” virou varinha de condão. Por trás dessa “fé pública” os agentes tomaram gosto em emitir multas à vontade, à revelia do multado. As mais freqüentes referem-se ao uso de telefone celular e ao não-uso do cinto de segurança.







Conversando com um jovem agente de trânsito, desses que usam, em Goiânia, o uniforme amarelo-ouro sem ser craque da Seleção Brasileira, ouvi dele justamente isso: “fé pública”. A coisa, então,  torna-se o velho jogo de uma palavra contra outra, com a irreversível desvantagem do cidadão multado; e contra a “fé pública” não há defesa. Como provar o contrário? Uma testemunha dentro do carro sempre será passível de suspeição; a constatação de que, no momento da multa, o celular do condutor multado não era usado não prova nada: “Ele pode ter usado um celular de terceiros”, alegou-me o moço que tem “fé pública”.


Ao mesmo tempo da Copa da Mundo, alguns outros brasileiros, imbuídos de um poder que lhes dá a notoriedade na mídia ou o fato de já ter sido agraciado com o benefício da “fé pública”, resolveram matar mulheres: o goleiro Bruno, capitão da equipe de futebol do Flamengo, para evitar o pagamento de pensão alimentícia à mãe de um  provável filho seu, concebido (segundo ele próprio) durante uma orgia; o advogado e ex-policial militar paulista Mizael Bispo, por se sentir incomodado com a imaginável possibilidade de a ex-namorada vir a curtir outro corpo, bem como fazer declarações e juras de amor para outros ouvidos que não os seus. E partiram, ambos, para a matança.


Mizael, ex-policial, talvez não tenha perdido o calor da farda; ou pratica a auto-exaltação por ser bacharel em Direito. Num ímpeto de semideus, decidiu eliminar a ex-namorada. Armou-se de tantas provinhas para constituir um álibi que despertou suspeitas do delegado que investigava o sumiço da advogada Mércia. Bruno cercou-se de amigos, parentes e namoradas para criar uma estrutura intrincada que, tal como no caso Mércia-Mizael, pecou por excesso. E o desaparecimento de Eliza é, agora, muito bem compreendido por quase toda a população brasileira.

Pois é,  Perdemos a Copa! A nação do futebol voltou atenções para os casos das moças trucidadas com requintes de crueldade. E a atenção aos jogos da Copa e aos assassinos do sul-maravilha fizeram com que a Pátria das chuteiras se esquecesse da tragédia que vitimou milhares em Alagoas e Pernambuco. E pelo silêncio de alguns canais de notícias, por pouco a nação viraria as costas também a um caso horrendo em Santa Catarina – o estupro de uma menina de treze anos por dois adolescentes que, também muito jovens, aprenderam cedo a dar carteiradas, desafiando os desagradáveis com o tradicional bordão “Você sabe com quem está falando?”.

Nas multas misteriosas dos agentes goianienses,  nas mortes de Eliza e Mércia e, ainda, no estupro da menina de Florianópolis fica bem nítido esse desafio à lei e à sociedade: os caras estupram, matam e multam porque têm a autoridade da “fé pública” (ainda que o público duvide de sua legitimidade) ou a capa do poder de família, seja ele um distintivo de delegado de polícia do pai de um ou o volumoso patrimônio que dá ao pai do outro um poder capaz de interferir na política. E, neste caso, se bobearmos, até a Justiça pode se tornar esquecida.



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Luiz de Aquino é escritor, membro da Academia Goiana de Letras. 
E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com.

sábado, julho 10, 2010

Medo do Futuro






Medo do futuro




A Câmara Federal pretende perdoar os crimes contra a Amazônia cometidos até 2008. Eu disse Amazônia? Crimes contra a Humanidade, centrados no desmatamento desenfreado, isso sim!

A Câmara Federal aprovou, também, o piso salarial de policiais e bombeiros militares (consta que será de R$ 4 mil para soldados, R$ 7 mil para tenentes). A Câmara Federal aprovou, sei lá quando, um piso salarial de R$ 1.300 para professores.

Dirão aí que existem policiais corruptos. Policiais torturadores. Bombeiros que não correspondem à imagem que a nação faz deles. Direi eu que existem também professores que não se sentem comprometidos com os ideais e os princípios fundamentais da Educação. Professores de Matemática que não conhecem de raiz quadrada, professor de Português que não sabe de gramática e ortografia.

Com os novos níveis de salários para os militares bombeiros e policiais, é hora de os parlamentares cuidarem de valorizar os professores. A área da Educação continua sendo a mais espezinhada pela classe política. Já disse (e escrevi) há anos que, no Brasil, político é o péssimo aluno que, por alguma razão que escapa à lógica, conseguiu vencer na vida. E passa a vida adulta vingando-se dos professores porque estes tentaram ensinar-lhes alguma coisa.

No final do primeiro semestre letivo deste 2010, uma professora de Língua Portuguesa numa faculdade pública foi alvo da antipatia dos alunos. Tudo porque a mestra atreveu-se a corrigir ortografia, regência e concordância nas provas. Caras fechadas, semblantes de humilhados e até pais, que geralmente só vão às faculdades para as festas de formatura, apareceram para exigir da professora:

– Para de apertar meu filho, você está “perseguindo ele”.
Nas ruas , a zelosa professora passou a ser olhada como uma torturadora, uma capitã-do-mato dos tempos atuais:

– É essa aí a professora que quer fazer “os menino” da faculdade escrever certo. Que bobinha!...

E assim, acadêmicos cujos cursos são custeados pelos nossos impostos vão ganhar grau universitário, ainda que falem: a pessoa “que eu gosto”; “conzinha”; açúcar “mascado”; casas “germinadas”. Imaginem! Em pouco tempo, esses “brilhantes” alunos serão chamados de doutores. Ou, pior ainda, de professores! Nada mal para quem aprende a falar ouvindo os locutores esportivos... Recentemente,  Galvão Bueno inventou mais uma regência esdrúxula:

– Quem quiser torcer “contra da” Argentina...

Verdade! Ouvi-o falar isso num intervalo de suas chatas falas enquanto transmitia corrida de Fórmula 1, prenunciando um jogo que aconteceria na tarde do mesmo dia.

A professora em questão tenta ser boa profissional, mas é impedida nesse propósito pelos próprios alunos, imaginem! Alunos que estudam de graça, às custas do Erário, e que não atinam pelo privilégio que têm de adquirir cultura e conhecimento a custo zero. E é ameaçada pelos pais desses alunos. Um deles visitou a mestra na universidade e foi desaforado:

– Fique a senhora sabendo que eu posso muito bem pagar faculdade particular pro meu filho – disse o “poderoso” papai.

E arrematou, senhor de si:

– Faculdade federal não presta mesmo...

(Continuo defendendo um salário para professores no mesmo piso que darão aos tenentes policiais e bombeiros).




Luiz de Aquino é membro da Academia Goiana de Letras.  
E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com. 




sexta-feira, julho 02, 2010

Centenário do Professor Gomes Filho

Professor Gomes Filho, ano 100!
Professor Gomes Filho, entre Luiz Antônio e Coxó (em 1978


Era 20 de agosto, em 1910. Na capital do Estado, a cidade de Goiás, uma moça chamada Ana, moradora de um casarão incrustado na barranca do Rio Vermelho comemorava seu aniversário de vinte anos; em Pirenópolis, na Rua do Rosário, pertinho do Largo do Rosário, nascia o menino Joaquim.
Ana, ou Aninha, não imaginava, talvez sequer sonhasse, que cinquenta anos depois começaria a ser conhecida em todo o país devido a uma referência forte e positiva do poeta mais admirado da época (Carlos Drummond de Andrade). Mas Aninha, a da casa velha da ponte da Lapa, tornou-se, antes da fama, Cora Coralina, a poetisa que fazia doces. Gomes Filho, lá pelos 12 ou 13 anos de idade, deixou Pirenópolis a cavalo, pegou um trem na ponta da linha (Pires do Rio, talvez) e desembarcou em Uberaba, foi fazer exames e habilitar-se à escola regular.
Contou-me ele, lá pelos idos de 1978, que após a argüição ante um professor de Francês, este anotou em sua ficha: “Deuxième année” (segundo ano). Atrevido, o menino de Pirenópolis tomou a caneta da mão do mestre, riscou a expresssão “Deuxième” e substituiu-a por “Trosième” (terceiro). O mestre admirou a coragem do garoto e aquiesceu: Joaquim Gomes Filho matriculou-se no terceiro ano do Ginásio Diocesano.
Notabilizou-se pelo tirocínio, ou seja, a rapidez de raciocínio com que reagia às situações de momento. Essa capacidade mental, aliada ao gosto pela leitura e pelos estudos, fizeram dele, além de contador por formação, notável professor, com amplo domínio da Língua Portuguesa e sua gramática. Texto fluente e límpido, ideias claras e com bom fundamento filosófico, jornalista e político, dirigiu importantes escolas em Pirenópolis e Goiás. Por concurso, tornou-se Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, ao tempo em que os conselheiros eram chamados de ministros e aposentou-se em 1963, depois de ter exercido, mais de uma vez, a presidência do órgão.


Tinha também sólida formação católica e orgulhava-se das coisas culturais das cidades de Pirenópolis e Goiás. Certa vez, Pirenópolis em festa recebia obras do governo estadual e Gomes Filho foi convidado a saudar o governador Irapuan Costa Júnior, de quem foi professor. Discorria, de improviso, sobre as coisas de Pirenópolis, obviamente exaltando a história e os costumes locais quando notou, na Banda Fênix, formada diante do palanque, um menino, pequenino, portando uma requinta (instrumento parecido com a clarineta). Interrompeu e perguntou ao menino seu nome e idade. O guri respondeu e Gomes Filho exaltou a precocidade daquele instrumentista: “Como se vê, governador, esse menino tem apenas dez anos e já toca requinta na banda. Aqui, todos já nascemos requintados”.
Seu amigo José Sizenando Jaime, meu mestre no curso de Geografia da Universidade Católica, escreveu uma importante obra sobre a cultura popular dos pirenopolinos e dedica boa parte do livro aos trocadilhos inesperados de Gomes Filho. A propósito, e respeitando a cronologia, Gomes Filho, José S. Jaime e José Veiga formam, para mim, o trio de maior requinte dentre os nativos de Pirenópolis (Veiga nasceu no município vizinho, Corumbá de Goiás; mas, digam-me, como fazer diferença entre as duas cidades, distantes apenas 17 km por rodovia?).
Seguindo a Rua do Rosário em direção ao Largo, onde hoje há o coreto, lembrei-me do que me contou Gomes Filho sobre o local de seu nascimento: a  penúltima casa do lado esquerdo de quem chega ao Largo do Rosário, era ali que morava minha família. Pertencia a Chico de Sá, o dono da casa grande voltada para o largo onde, na época, existia a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, demolida em 1947. A casa seguinte foi construída pelo pai de Joaquim Gomes Filho, em terreno doado por Chico de Sá. Nela, o professor passou a infância até sair para o aprendizado das escolas e do mundo.
Desfrutei de seu convívio desde 1977, quando, com muita timidez, abordei-o no canteiro central da Avenida Goiás, em frente ao Grande Hotel (esquina com a Rua Três). Disse-lhe o meu nome e ele identificou-me como o neto mais velho do maestro Luiz de Aquino, seu amigo, falecido em fevereiro daquele ano. Falei do livro que estava escrevendo e pedi-lhe orientação, sendo imediatamente convidado a ir à sua casa, na Alameda das Rosas. Fiquei rico com esse convívio: ganhei, além de excelentes conselhos, uma meticulosa revisão em meus originais (a gráfica cuidou de estragar, e muito, o texto ao digitá-lo, com os recursos gráficos da época). De quebra, ganhei também um belo prefácio para o meu livro de estreia.
Haveria mais: era prefeito de Pirenópolis Altamir Mendonça. Ajudou-me com uma parcela do custo gráfico do livro e ofereceu-me também um coquetel de lançamento, no qual o professor Gomes Filho discursou de improviso e brilhantemente, como sempre.

Ah! Estou tocado de saudade... E de emoção, é claro! Afinal, dia 20 de agosto próximo, Pirenópolis precisa parar por uns instantes. É tempo de reverenciar um de seus mais importantes vultos, o contador, professor, jornalista, diretor de escolas, deputado, conselheiro, pai de quatro belas filhas e um tanto de netos e bisnetos. É tempo de convidar a família e os amigos sobreviventes (Jorge Braga há de produzir uma nova caricatura, estou certo). Vamos reunir pessoas para recordar e reverenciar o mestre.
Para mim, um ídolo!



Luiz de Aquino é membro da Academia Goiana de Letras. 
Blog: http://penapoesiaporluizdeaquino.blogspot.com/. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com.