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sexta-feira, setembro 23, 2011

Égua das letras



Égua das letras



Aquela década de 1960, marcada por tanta coisa que reflete fortemente na vida atual, seria a dos meus anos dourados. Vamos ver? Em 1958, entrei no ginasial; em 1960, torci e distribuí panfletos, fiz discursos infantis nos trens da Central e no frontal do colégio – tentava eleger o Marechal Lott em lugar de Jânio Quadros. A bossa nova surgira com força. Em 1961, paramos as escolas e, com os trabalhadores, o Rio de Janeiro e o país quanto Jânio renunciou.

Em 1963, voltei para Goiás – mas nunca mais Caldas Novas; minha cidade, desde então, é Goiânia, com Caldas Novas na saudade e Pirenópolis, sempre, no coração. O golpe militar em 1964, a revolução na indústria e na propaganda, a mudança de costumes, estimulada pelas novidades musicais e pela pílula anticoncepcional. Casei-me em 1965, aos vinte anos de idade. Ou seja, tudo mudava, tudo!

O idílio romano...

 Cinema? Marcas fortes foram “O Candelabro Italiano” e “Doutor Jivago”, carimbados por duas canções que fizeram nossas cabeças e nossos corações – “Al di là”, para o primeiro, e “Tema de Lara” no épico russo. A melodia italiana, de Carlo Donida e Mogol, virou varinha mágica: cantá-la equivalia a uma cantada (perdoem-me pelo trocadilho, mas fez-se inevitável, agora). De fato, amolecia corações, quebrava resistências. Quantos namoros e casamentos não se fizeram ao som terno e romântico dessa música! “Muito além das estrelas, tu estás, tu estás, muito além”...

Todo mundo comprava, ouvia,
cantava e se apaixonava...
“Tema de Lara”, de Maurice Jarre e Red Steagall, fartamente cantada onde houvesse amor, paixão e (ou) suas possibilidades, fez florir milhões de corações mundo afora! Tive um professor de Inglês em Anápolis (cursei lá um semestre de escola) que levou-nos a letra-poema que contrariava a afirmativa de que as letras de músicas do Tio Sam eram desprovidas de poesia: “Somewhere a hill blossoms in green and gold,
and there are dreams, all that your heart can hold” – ou, em tradução livre “bái maisselfe”: “Em algum lugar um monte se rompe em verde e ouro, e há sonhos, todos os que seu coração puder colher”.


"...a hill blossoms in green and gold..."


Parêntese: sou feliz por ter vivido coisas assim. E mais feliz por lembrá-las. Não é saudosismo nem retrocesso, pois, para mim, o melhor tempo é agora! Entre aqueles anos que deveriam ser dourados – mas turvaram-se pelo cerceamento à liberdade, às limitações das expressões. Só mesmo nossos sonhos continuaram livres e puderam manifestar-se quando “raiou a liberdade no horizonte do Brasil” (do poema que vem a ser o Hino da Independência, atribuído a D. Pedro I). Uma liberdade duramente reconquistada e, hoje, manchada de vícios e péssimas intenções, parte delas concretizadas, outra parte reprimida ao peso da Lei – quando possível, quando escapa de “sanas” e “barbalhas”. 

Não tínhamos medo de lutar 
Nos anos de chumbo, refugiamo-nos nas leituras e escritas possíveis. Reunimo-nos quando possível, publicamos quando possível. De lá, daqueles tempos, herdamos a mania das reuniões, quase que totalmente inúteis, mas sempre realizáveis. Como um seminário – que vem a ser um amontoado de reuniões da mesma natureza das citadas – recentemente acontecido aqui em Goiânia, reunindo um expressivo número de ativistas culturais, mas com a notável ausência de nomes expressivos da comunidade artística e intelectual da Capital, salvo raras exceções. Do meio literário, sempre tido como de grande número de participantes, apenas três figuras de todo o Estado.


Cumprindo exigências dos  promotores, que se esqueceram de convidar ou convocar instituições como a União Brasileira dos Escritores (a maior e das mais atuantes entre as entidades culturais em Goiás), a Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e a Academia Goiana de Letras, o trio designou uma moça, que “representava” o fazer literário de uma cidade entre as duas capitais deste Planalto Central, para expor ao plenário uma proposta de trabalho.

Quando soube disso, fiquei meio incrédulo... Como pode? Três escritores apenas para apresentar uma proposta de trabalho com objetivos de... De que mesmo? Não atinei! Mas o que a moça disse aos demais artistas era algo de causar estranheza: ela se valeu da ocasião para contar de seus feitos na cidade que representava no tal encontro que, parece, pretende juntar elementos que justifiquem o esforço de se criar, na esfera do Governo Estadual, uma Secretaria da Cultura (já existiu; um deputado puxa-saco, com sobrenome de líder comunista, conseguiu aprovar na Assembleia, no começo da década de 1990, o fechamento da dita cuja, com a simpatia do governador da época).

A gente sabe... cultura estressa!
A moça contou que seu trabalho consiste em percorrer a cidade numa carroça cheia de livros, “levando cultura” aos munícipes. E que tinha o apoio decidido da prefeita, que a socorre sempre que a égua das letras empaca ou adoece, substituindo o simplório e embrionário cabriolé por uma viatura com motorista.


Gente, isso me envergonha mais que bala perdida! Será que dá filme para concorrer ao Oscar? Afinal, somos hábeis no cinema da subvida, da subserviência e do complexo de vira-lata. 


* * *



domingo, setembro 18, 2011

“O Brasil é feito por nós”

Barão de Itararé: "Só falta desatar os nós"


“O Brasil é feito por nós”


Quem, com mais de 50 anos, não se lembra? Esse era um dos slogans do chamado “regime militar” – tão militar que mandava dispersar grupos de mais de três pessoas nas esquinas, estimulava a delação (quase sempre gratuita, com o propósito de afastar do caminho um colega cujo cargo despertava inveja ou de eliminar concorrentes), obrigava-nos a uma espécie de toque-de-recolher, privilegiava os ricos e pisava nos pobres... dia destes o jornalista Alexandre Garcia lembrou que a ditadura militar acabou com a pobreza chamando pobres de carentes; e outro “global”, Arnaldo Jabor, tem mostrado que os “republicanos” dos EUA odeiam pobres, chamam-nos de “fracassados”.

A ditadura militar era o “partido republicano” do Brasil...

Havia outros: “Brasil – ame-o ou deixe-o”. Sobre este, um humorista do jornal O Pasquim – verdadeira trincheira de resistência – fez um trocadilho poliglota: “Em inglês há uma eufonia – Love it or live it; podíamos tentar o mesmo, que tal “ame-o ou mame-o?”. Certamente alguns jornalistas foram presos por isso...



Um estudante ginasial de Curitiba, lá por 1969 – ano em que foi instituída a disciplina Educação Moral e Cívica – fez piada; seu professor, um sargento do Exército, mandou dissertar sobre o lema daquele ano, “Brasil, conte comigo”. O guri escreveu, da primeira até a última linha “Um, dois, três, quatro...” e o sargento, seriíssimo, não titubeou: mandou prender o pai de seu aluno.



O Brasil é feito por nós” também gerou piadinhas... Alguns cartunistas foram detidos por desenhar muitos nós (sim, plural de nó) dentro de um mapa do Brasil.


Naquela ocasião, eu trabalhava numa empresa com capital público. Mais precisamente, uma “tele”. E o grupo lançou um concurso de monografias, em todas as “teles” do país, sob esse tema. Fui o vencedor, aqui em Goiás. O prêmio era uma viagem a Salvador – apenas a passagem aérea, oferecida pela agência local da Vasp – sem direito a acompanhante nem a hospedagem, nem mesmo a abono de ponto, embora o edital falasse em “uma semana...”. Pedi minha parte em dinheiro, e demorou um tempo até que me fosse repassada; embora eu ganhasse bem, passagem de avião era coisa cara; equivaleu a cerca de metade do meu salário.




O pior estava por vir. Chamaram-me à diretoria. No meu texto, tratei de montar uma “história” do Brasil em forma de uma “história cultural”. Era 1977 e arrematei meu texto com ênfase para escritores e compositores musicais. Inevitavelmente, citei Chico Buarque de Holanda. Na reunião, muito breve, foi-me dito que os cinco melhores trabalhos seriam enviados para a “holding” do grupo, competindo com os vencedores das congêneres nacionais. Mas eu devia omitir o nome de Chico Buarque. 


Recusei-me a mutilar meu texto... E a briga começou. De então até minha dispensa da empresa (19 de abril de 1979), fui transferido de sessão ou departamento, fiquei marcado como esquerdista por simpatizar com um “inimigo da revolução”; havia uma tal ASI (Assessoria de Segurança e Informação) que “descobriu”: eu fora alijado da rede escolar, como professor, por “suspeitas de professar ideologia exótica”.

Minha demissão foi mascarada por motivos criados – o que, mais tarde, conceituou-se como “factóide”. Linhas acima, citei Educação Moral e Cívica; pois bem, lecionei a disciplina no Liceu, naquele 1969. Consegui movimentar o interesse dos alunos pelas coisas nacionais – inclusive por literatura, música, costumes... Analisava com eles letras de hinos cívicos, recorrendo a uma parceria múltipla que, anos depois, foi nominada por educadores de “interdisciplinaridade”.

Senti-me realizado! Ainda era estudante e senti que fazia um bom trabalho de Educação, não melindrei o regime, não deixei motivos para ser tomado por colaborador com o sistema nem como “inimigo da pátria”. Mas, à falta de motivo, restou aos enciumados professores que me viam como um perigoso concorrente não a delação – mas o plantio da dúvida.

Em suma: em poucos anos, criei nome como professor; e aquela dedicação custou-me o que viria a ser a carreira dos meus sonhos: em toda escola aonde em chegasse, não passava de três dias de trabalho – era o tempo para os enciumados descobrirem e espalhar o veneno.

Fosse hoje, meus detratores teriam muito mais facilidade: ouvi dizer que existe um telefone zero-oitocentos para alunos reclamarem de professores, e cada denúncia vira inquérito administrativo.

Será verdade?

* * *



Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras.

quarta-feira, setembro 14, 2011

Professor é demitido por ensinar a pensar

Amigos meus, 

Recebi do Professor Celso Moraes de Faria e lhes repasso. A que ponto chegamos? Soube, agora, que existe um telefone da série zero-oitocentos, em Goiás, para que alunos denunciem professores da rede estadual. Ou seja, um disque-denúncia inusitado. Quem tem boa memória sabe do que são capazes adolescentes. Imaginemos, agora, do que serão capazes alunos-problemas, adolescente ligados, ativa ou passivamente, com o tráfico de drogas! Hoje, alunos ameaçam, agridem e até matam professores...

Mas... vamos saber o que aconteceu com o Professor Celso!


Celso Moraes de Faria12 de setembro de 2011 16:41

Prezado Luiz,
não sei se deveria enviar esta mensagem a você, mas pela minha consideração pela sua pessoa e pelo fato de tê-lo como alguém pleno de discernimento e bom-senso, eu o fiz. E-mail longo, desculpe. Mas gostaria que o lesse na íntegra, e antecipo agradecimentos.

Acabo de ser demitido do Colégio Dom Pedro I, na interiorana cidade de São Luís de Montes Belos, por causa das fotos postadas no álbum “Eus” (Orkut e Facebook), porque alguns pais (em minha opinião, no mínimo mal informados), que não distinguem pornografia de ARTE, acharam que as imagens são “chocantes” e por isso perderam a “confiança” no professor que leciona para seus filhos. A ironia é que a grande maioria desses filhos confia muito mais no professor do que nesses pais, tendo em mim um confidente realmente confiável...

A escola, em vez de tentar colocar um pouco de cultura na cabeça desses pais, prefere o caminho dos acomodados e concorda com eles. A direção, frouxa e acomodada, diz amém ao que os clientes arrotam, preferindo manter a carteira de clientes a desempenhar um papel pedagógico de verdade. Nenhuma surpresa aqui. Mas, pergunta-se: considerando-se que as fotos postadas são recriações de obras de arte de Michelangelo e outros de igual quilate, Michelangelo seria demitido dessa instituiçãozinha? Essa escolinha interiorana se acharia maior que o gênio italiano? Provavelmente.

Com exceção dos alunos que herdaram a idiotia e a falta de visão dos pais (felizmente uma minoria entre os discentes), sei que tenho a solidariedade dos demais (o que não paga as contas, mas, enfim...). Acredito que as MINHAS aulas de Filosofia têm sido úteis aos alunos na medida em que ensina cada um a pensar por si mesmo, ao contrário da matéria ministrada até então, infelizmente numa total incompetência, a ponto de um aluno escrever “fui apresentado à disciplina em 2011, eu não conhecia Filosofia até então” (tenho o texto original para provar que não invento).

Enviei um abraço em carta aberta aos meus ex-alunos. Não minto ao dizer que, de certa forma, sinto-me aliviado por não mais fazer parte de uma instituiçãozinha retrógrada, cheia de gente que não distingue uma obra de arte e uma releitura dela da vulva de suas dignas genitoras. Que o(a) próximo(a) que pegar as aulas ministre de acordo com a linha de pensamento do “colégio”, ou seja, com insipidez e provincianismo, dizendo amém aos pais que, com sua mentalidade de jerico e suas mensalidades, mantém a empresa funcionando. Perdem os alunos.

Que avaliem o próximo professor, comparem as aulas deles com as minhas. Não temo a comparação. Tenho plena consciência de que minhas aulas atingiram os objetivos propostos. O problema é que esta cidadezinha não está à altura de certas linhas de pensamento...

Aos meus alunos, deixei o meu "muito obrigado" pela convivência e pelas amizades feitas. Serão eternas. À instituição, o maior dos desprezos. Para sorte da cúpula gestora, imbecilidade não mata, ou teríamos um enterro coletivo.

Se você está recebendo este texto, Luiz, é por dois motivos básicos: primeiro, como eu disse acima, considero você uma pessoa com mentalidade e discernimento suficientes para entender esta situação. Em segundo lugar, gostaria que fizesse algo, se a sua consciência concordar com isso. Peço que perca um pouco do seu tempo e analise com cuidado as fotos em questão. Os links:

http://www.facebook.com/l/rAQAvG8GJAQBiGXGIQz0n-Eo9InDFaetJnQfdjCGeveuqSA/www.orkut.com.br/Main%23AlbumZoom?gwt=1&uid=14271299348499189866&aid=1314719044&pid=1314746500294

(obra de Michelangelo que deu origem à minha primeira releitura)

http://www.facebook.com/l/nAQBCuo2CAQCMc47QN6gY2CQECGGpLpOrupiH0mBod1LhpQ/www.orkut.com.br/Main%23AlbumZoom?gwt=1&uid=14271299348499189866&aid=1314719044&pid=1314746790413

(essa é a minha releitura. É pornográfica? É de mau gosto?)

http://www.facebook.com/l/TAQCvVSxiAQDl_z8y3PBZLuXH1KlLhL9-8ZZA1ywsbRppeQ/www.orkut.com.br/Main%23AlbumZoom?gwt=1&uid=14271299348499189866&aid=1314719044&pid=1314747012358

(“Adão sem Eva 1 – A tentação”. Onde o motivo para “choque”?)

http://www.facebook.com/l/QAQCeCVokAQAaGx9X2yggz8qNtKy-ak_ugbyWgyKhvWA5JQ/www.orkut.com.br/Main%23AlbumZoom?gwt=1&uid=14271299348499189866&aid=1314719044&pid=1314747128732

(“Anjo de asas sujas”. Obsceno? Chocante? Onde? Em quê?)

http://www.facebook.com/l/bAQActNEHAQCpeete9g6QkubMQsYWZ3kPe4gA6C3b3-MgNg/www.orkut.com.br/Main%23AlbumZoom?gwt=1&uid=14271299348499189866&aid=1314719044&pid=1314747397266

(“A última conversa de Adão com Deus antes da criação de Eva”. Indecente? Imoral?)

Creio que, embora a empresa tenha a prerrogativa de demitir quem queira, isso configura censura à liberdade de expressão, uma vez que não houve nada indecoroso ou censurável. Você, que tem um canal de expressão bastante abrangente, poderia divulgar esse fato? Veja as fotos e tire suas conclusões. Entre em contato com outras pessoas, se achar que deve. Creio piamente estar certo. Maldita mentalidade provinciana!



Se puder divulgar isso pra mim, de alguma forma, para que a coisa toda não passe em branco, agradeço imensamente. Estou aqui para dirimir quaisquer dúvidas que porventura você tenha.

Um grande abraço, 

Celso.

sábado, setembro 10, 2011

De letras e música




De letras e música


Conheço três escritores daqui da terrinha que não gostam de música. Ou melhor: eles gostam de música clássica ou, pelo menos, instrumental. O primeiro entre estes, há mais de trinta anos, acusou-me de “mau ledor de poesia” ao notar que eu gostava de MPB – afinal, era o tempo em que letras de música eram instrumentos de nossa insatisfação com o regime; e, paralelamente, eu gostava de letras poéticas e românticas.

O segundo tem um postura interessante: nunca o vi a curtir alguma música, a comentar uma letra ou mesmo a fazer fundo musical – por exemplo, nas viagens de carro, que viajamos juntos algumas vezes – para a conversa. Dele ouvi que música, diretamente, não lhe diz respeito, prefere outras manifestações de arte.

E o terceiro, este limita-se apenas à música que chamamos clássica. Para ele, a música prescinde naturalmente de letra e letra de música é um péssimo poema que pede apoio a outra arte.

Dos três, cultivo amizade com apenas um. Um desses aí, que conheci há quase meio século, entre os muros e as salas de aulas do Liceu, sempre me dedicou olhares discriminatórios e sua simpatia não me faz falta; um outro, a quem tomei por amigo há uns quarenta anos, merecerá de mim artigo especial a qualquer momento. Inclui-se entre aqueles animais de péssima memória, incapazes de reconhecer, num circo ou num zoológico, o próprio tratador (a pessoa que lhes traz comida). O segundo é, entre os três, alguém de quem ainda aceito o tratamento de amigo, embora guarde anos de silenciosa ausência.

Carlos Drummond de Andrade
Gilberto Mendonça Teles
Fernando Pessoa

Bem, o parágrafo anterior é quase que desnecessário aqui; escrevi-o apenas como um desabafo e um modo discreto de justificar a omissão dos nomes; sobre os desafetos, esclareço que aprendi com Carmo Bernardes que nem todo mundo merece ter seu nome escrito em letra de fôrma; e o que está salvo em meu critério é omitido para dificultar a identificação dos pulhas.
Não tratarei aqui do mérito das letras de música. Muitas delas são poemas perfeitos; andariam sozinhas como obras de finíssima literatura, mas enriquecem as melodias ou fazem belos pares com estas. Outras há que não sobreviveriam sem o acasalamento com a melodia. Portanto, grande parte do que temos como música popular reveste-se de predicados para ser tratada como arte. Mas o que temos agora...

"A Banda", de Chico Buarque; por que não
se fazem mais letras como antes?
Nas duas últimas décadas, vivemos um período triste para o cancioneiro nacional. Coincide com o tempo de redemocratização – como se nossos azes da canção só produzissem bem quando oprimidos. Mas não é (só) isso: ao que tudo indica, a máquina da indústria musical centrou baterias em torno da produção comercial. Daí a proliferação das duplas ditas sertanejas (e que de sertão nada têm) e dos pagodes em que (nos dois casos) qualidade melódica ou de textos é o que menos conta.

A isso, sim, não se pode chamar de arte, mas de “empreendimento no ramo musical”. Empreendedorismo...

Aliás, empreendedorismo é uma palavrinha bem mal concebida, hem? Se a coisa se refere a “empreender”, deveria derivar daí, e não de outra derivada, que é “empreendedor”. Mas é da moda destes últimos vinte anos inventar palavras, ao mesmo tempo em que as massas se deixam levar pela mídia que superlota xous de uma menino cantor que diz “um beijo fala mais que mil palavras / Um toque é bem mais que poesia”. O primeiro verso cai bem, mas o segundo…

"No meio do caminho...", escreveu Drummond; o beijo fútil do menino cantor vale mesmo mais que um poema assim? 

Bem, a letra inteira, e a música em seu todo, são de gosto duvidoso. Ou sofrível, como diria um velho mestre meu, sempre com o cuidado de não ofender. Mas porque devo eu não ofender o jovem e muito bem pago cantor (respeito-o, e lamento que a máquina financeira faça dele um boi de exposição), se ele não respeita meus ouvidos?




* * *



Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras

sexta-feira, setembro 02, 2011

Sapucaia


Sapucaia


Primeiro, o dicionário de papel; depois, uma consulta ao Google. Faltou-me um bom livro de botânica brasileira, mas o que encontrei é o bastante. Queria saber um pouco sobre uma solene árvore que fica junto ao muro do Parque Agropecuário, junto da esquina da Avenida Meia-Ponte com a Rua Um da Nova Vila, na esquina próxima ao CRER (Centro de Reabilitação Henrique Santillo).


Bem, uma amiga me preveniu: a árvore, estes dias, está totalmente desfolhada. Indica que estamos nas últimas semanas da estação seca e em poucos dias ela passará pela floração. Suas folhas ficarão róseas (as mulheres que me ajudem! Eu chamo aquilo de cor-de-rosa, mas as mulheres terão no mínimo cinco nomes que bem marcam os tons variados do que eu chamar de cor). E ao pesquisar o nome “sapucaia”, encontrei um exemplar dessa árvore no ponto em que se faz muito bela, belíssima! Mais que quando verde, que o verde das folhagens é também expressão de raríssima beleza, mas a coloração festiva só ocorre uma vez a cada ano e justo nessa transposição do Inverno para a Primavera (os nomes das estações em maiúsculas obedece a regra que trago dos tempos de  primário; qualquer mudança posterior aparece-me como novidade não convincente).


Volto aos conceitos: o dicionário em papel – no caso, o Caldas Aulete (tenho reservas ao Aurélio) – diz-nos que sapucaia é nome de várias árvores, mas dá primazia ao nome científico de uma delas, Lecythis pisonis. E a enciclopédia virtual Wikipédia (nem tudo o que vemos lá é confiável, porque aceita acréscimos, em alguns casos) informa um pouco mais:popularmente conhecida por sapucaia ou cabeça-de-macaco, é uma árvore brasileira da família das lecitidáceas. Sua semente é chamada castanha-de-sapucaia. A palavra sapucaia tem origem tupi, ainda que existam diferenças nas propostas etimológicas: ou resulta da união dos elementos sa, puca e ia (respectivamente: olho - que se abre - cabaça) - já que ao abrir-se o opérculo do fruto (que é um pixídio) parece que se vê um olho. Por outro lado, há quem considere que a palavra tem origem na palavra tupi para galinha (elemento de troca entre índios e portugueses, no início da colonização, que as trocavam pelas sementes do fruto - castanhas)”.


Pois é! Algumas árvores marcam bem nosso habitat. A sapucaia no Parque da Pecuária é uma das principais referencias de Goiânia – como as gameleiras do Setor Sul e as do Setor Universitário; os ipês em toda a cidade (tenho preferência por um ipê branco na Avenida 136, entre a Praça Kalil Gibran e a Rua 115), e as buganvílias da Avenida Portugal.


Daqui a poucos dias, a sapucaia vai florescer e está em mim a impressão de que flores e folhas ganham a mesma cor. É o que vejo nas fotos pesquisadas na Internet. Muita gente vai até lá fotografá-la, postar fotos em suas páginas no Orkut e no Facebook, mostrar aos amigos...  É comum a gente se apegar a árvores, elas nos sugerem segurança. E é comum também nos encantarmos com as flores. Flor é sexo de plantas, é a demonstração natural da reprodução, tal como o ventre avolumado das fêmeas sugerem vida nova. Para a sapucaia, o ano deve começar agora, ao término de seu desfolhamento natural para dar lugar ao novo, às flores e aos frutos que virão a seguir.


A natureza ensinou-nos muito! Inclusive a medir o tempo: dias e noites são instantes distintos, mas aprendemos que noite e dia somam-se para mostrar a porta-bandeira Terra a sambar em torno do mestre-sala Sol; a Lua mostra-nos a semana em cada fase e soma-as para nos dar um mês; e as plantas, florescendo assim como a Sapucaia (agora, em maiúscula; e é desnecessário explicar) nos mostra um ano. E pensar que os nômades dos desertos “descobriram” o ano apreciando as estrelas!


Em síntese, é a vida a renovar-se, a renascer e... a nos ensinar! Os contadores de dinheiro e outros bens materiais desatinam-se ao tentar ridicularizar os poetas que apreciam as flores, a Lua, o Sol, as estrelas... a natureza em geral. Não sabem, esses desavisados, que viver é poetizar. E, poetizando, fui até a Nova Vila fotografar a sapucaia desnudada. Feito eu mesmo, meio século atrás, a bisbilhotar, à fechadura, a prima que se enfeitava após o banho.


Aquela nudez sugeriu alegria! Não está bela, a árvore, ela apenas se prepara para ornamentar-se de cor, como a prima se embelezava de tecidos e adereços, jóias e carmins de pó-compacto e batom. E nós, cidadãos da cidade, admiradores enamorados, voltaremos lá para regalo dos olhos e registros de imagens.

 


* * *


Gilberto Mendonça Teles e L.deA.
(Goiânia, janeiro/2011)










...e um poema a propósito, do mestre Gilberto Mendonça Teles:



Escreveu-me GMT:
Luiz, quando li sua crônica e vi o pé de sapucaia, me veio logo uma brincadeira 
poética, que aí vai:
                                                              

        Vilancico


Venha logo, tire a saia,
venha logo, meu amor,
debaixo da sapucaia,
o chão coberto de flor,
passarinhos dando vaia
no meu jeito de doutor
e no seu ar de gandaia
venha logo, meu amor,
galopando além da baia,
seja aqui, por onde for,
no mar salgado, na praia,
na tristeza de uma dor,
na beleza do Araguaia,
venha logo, meu amor,
para o meu rabo-de-arraia,
você no chão, com suor,
na moita de samambaia,
eu morrendo de calor
como um homem de tocaia
tendo você ao dispor
e que dança, canta, ensaia
e nunca sai do isopor


                   Rio, 2.9.2011