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domingo, janeiro 26, 2014

Ansiedade virtual

Imagem: Internet


Ansiedade virtual


É da minha memória um provérbio, ou ditado popular, corrente entre os nossos roceiros dos meus verdes anos “Um gambá cheira o outro”.

Isso pede algumas explicações. Primeiro, esclareço aos jovens e especialmente aos adventícios que o Brasil mudou muito em poucas décadas – e Goiás mudou muito (mudou demais) nesse mesmo período – período esse que me transportou dos tempos da cara imberbe até as cãs destes dias que antecedem a Copa do Mundo outra vez no Brasil.

As mudanças em Goiás vieram com Brasília. E, logo em seguida, com a televisão, que incorporou o videotape (pesquisem!), o telefone integrado à rede nacional, as rodovias asfaltadas, as transmissões em micro-ondas, depois “via Intelsat”... E vieram as redes nacionais de tevê, depois o telefone celular, e aí a máquina mais maluca ainda do que a tevê, que matava de medo os pensadores da geração de jovens do tempo em que nasci – ou seja, a dos meus pais: a cibernética chegou com força, deixou de ser algo parecido com ficção científica para se tornar quotidiano.

Em 1992, com ligeiro atraso, aceitei ser “apresentado” ao computador – até então, eu era “moderninho” porque usava máquina eletrônica (de escrever), tal como meus saudosos amigos (mais velhos) José Pinto Neto e Jacy Siqueira. E em 1996, embrenhei-me na misteriosa selva da Internet. Em breve, eu tinha minha página (site) de poesia e essa (hoje, aquele endereço não existe mais) foi uma das três primeiras a integrar o portal mundial de poesia da UNESCO.

Primeiro os “chats”, depois o Orkut e, por agora, o Facebook, onde venho removendo contatos que não fazem contato para dar lugar a novos contatos, pois já bati, há tempos, no limite de cinco mil; e não quero abrir novo perfil (página). Os parágrafos anteriores ainda não justificam tudo a propósito do que quero falar, mas vou resumir agora: aquele ditado bem goiano de meio século atrás quer dizer que os iguais se atraem, apenas isso. E desde que me tornei um “internauta” (as aspas são apenas por respeito ao neologismo cibernético), imiscui-me no mundo da poesia brasileira – a poesia acadêmica ou não, popular ou não. O fato é que fiz dezenas, centenas de novos amigos e boa parte dessas pessoas tornaram-se amigos pessoais, pois recebi em Goiânia alguns poetas que vieram conhecer-me, bem como empreendi viagens para conhecer de perto colegas de outras paragens.

Dentre estes, a poetisa com quem mais recentemente troquei linhas de conversa é Lucelena Freitas; e ela chegou por conta de uma amiga a quem visitei em Guarulhos, SP, em 1997 – Rosa Ferraz, que citou nossa amizade e minha visita, ilustrada com um poema de que ela gosta, concebido por mim justamente para homenageá-la. Lucelena está em https://www.facebook.com/lucelena.freitas.35 e em sua Linha do Tempo ostenta um poema chamado “Prazer em conhecer”.

Ela descreve uma nova forma de ansiedade, ou angústia, que se manifesta por conta da instantaneidade da Internet. A intimidade virtual, esse hábito de confissões mútuas, de segredos trocados entre pessoas que permutam confianças e confidências, incrivelmente facilitadas sem a magia dos olhares cruzados.
O fato é que, apesar da mágica da nova tecnologia, da irreversibilidade dos moderníssimos aparelhos de bolso (que substituem os agora prosaicos celulares e os notebooks), a gente carece de toques, de olhares, sorrisos que valem palavras ou carinhos.

E temos de admitir: nada como um caneco de chope ou uma xícara de café, um sorvete ou um suco gelado, desde que, frente a frente ou lado a lado, duas pessoas troquem a energia física só perceptível nas presenças.

Beijo, Lucelena! Marquemos um café – em Goiânia ou em Agudos, SP.

* * *

Eis o poema de Lucelena que motivou-me esta crônica (Luiz):

Prazer em conhecer

Estamos mudando! Mudando para... Mudos. Mudos num novo Mundo.
Nos espalhamos, Nos recolhemos Nos nossos cantos.
Conversamos... Sem falar. Desligamos... Sem avisar. Pausamos... Em pontos tão... Importantes.
E por um instante, Ou por minutos, Ou por horas, Nos comunicamos Com outras pessoas Que não vemos, Que talvez Nunca veremos.
Muitos, Não conheceremos Em sua essência, Pois só dirão o que querem, Ou omitirão Ou mentirão, Ou se exporão De uma forma ... Tão imprudente, Ou procurarão se completar, Realizar sonhos.
E... Ao redor dos nossos sonhos, Dos nossos olhos, Dos nossos carinhos, Dos ombros Que poderiam servir de apoio, Das mãos que poderiam Ser meios de afago, De carinho, Tudo se estatiza E se emudece.
Quero... Conhecer gente nova Sim,. Sem perder A minha gente. Quero... Ouvir novas idéias, Novas culturas Sem perder Minhas raízes. Meus galhos, Minhas folhas.
Quero... Saber quem você é, O que rola aí dentro. Estender a minha mão E alcançar a sua. Sentir seu cheiro, Falar com você E ouvir respostas: Dialogar.
Quero... Mesmo estando Tão perto Poder dizer: Prazer em te conhecer. Lucelena de Freitas (21/09/2012)



domingo, janeiro 19, 2014

Memória ou lembrança

Uma espécie de Antologia da Saudade (capa do Volume 3) 


Memória ou lembrança


As amizades que assim podem ser chamadas, diz-me um professor, exímio observador das pessoas, são aquelas que trazemos da infância e da adolescência. As demais – continua ele – formam-se dentro de conveniências transitórias.

– Ué! – estranhei eu. – Mas há muitas pessoas da nossa infância que são apenas, digamos, peças das nossas recordações; são aqueles de quem nos lembramos, encontramos eventualmente mas não os temos inteiramente no coração.

  Sim – continua o mestre –, mas eu não disse que todas as pessoas da sua infância são seus amigos; das suas turmas de colégio, que equivalem à adolescência, alguns permanecem...



Entendi! E ilustro com uma belíssima história de (re) encontros: em 2005, motivados pelas ferramentas do Orkut (o Facebook diminuiu drasticamente a importância do Orkut na vida dos internautas), alguns ex-alunos do Colégio Pedro II – o imperial e tradicional colégio de Sua Majestade – lançaram uma chamada, de pronto aceita. E, como é da tradição, no primeiro sábado de dezembro (caiu no dia 3), reunimo-nos para um almoço numa churrascaria na orla da Enseada de Botafogo, no Rio.
O menino Imperador

É sempre assim, há muitas décadas: no primeiro final de semana de dezembro, ex-alunos do CPII reúnem-se para festejar o aniversário do colégio, inaugurado em 2 de dezembro de 1937 – aniversário do príncipe que cedeu o nome ao Colégio.

A Internet fez com que os encontros se proliferassem. Se antes havia o churrasco no Engenho Novo (a Sessão Norte do colégio, em nossa época), há anos acontece também a feijoada de São Cristóvão (onde é, hoje, a sede do colégio; no meu tempo, era o Internato). E em choperias, pizzarias e churrascarias, dentre outros locais, os amigos de infância e adolescência se reencontram. Em 2006 (junho), fizemos um Baile da Saudade, na AABB da Lagoa, um dos locais onde aconteciam nossos bailes de formatura (naquele tempo, as cerimônias de formatura nos Ginásios e nos Colegiais eram plenas, com colação de grau, baile, missa, cultos etc.) e com um conjunto que era dos nossos preferidos, 40 anos antes!

O Baile da Saudade, em 2006, com músicas e banda dos anos 60 (no momento da foto, olhei para cima). 

Fiz novos amigos nesses encontros; mas principalmente voltei ao convívio de dois velhos amigos, uma amizade contraída a 3 de março de 1958, nosso primeiro dia de ginasianos: Paulo Fernando Cardoso e Paulo Roberto de Oliveira Tostes. E naqueles encontros descobri pessoas que, se não me foram amigos naquela época foi por absoluta falta de oportunidade, pois invadiram meu coração de modo igualmente indelével (ou “indeletável”, se eu tivesse a idades dos meninos de agora).

Desses novos, quero homenagear, aqui, muito especialmente três dos se eternizam na memória do Colégio e nas lembranças de quantos sobrevivemos: Fernando Antônio Quintella Ribeiro, Mirian S. Cavalcanti e Paulo Rubem de Souza Valente, organizadores e editores de uma série de crônicas e outras “contações” literárias sobre a nossa vida colegial (este ano, escolheram um poema que escrevi tentando sintetizar meu sentimento). Eles são os responsáveis por arrancar, de muitos colegas, a verve da escrita que, após os tempos em que severos professores nos exigiam, ficou adormecida – mas a alegria das recordações trouxe à tona aqueles momentos inesquecíveis!

Meu beijo, queridos Pedrocas! E até o Volume 4!



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sexta-feira, janeiro 10, 2014

O que muda, afinal?




O que muda, afinal?


Há alguns dias, escrevendo sobre o Natal e os Natais da infância, atrelei às lembranças uma infinidade de detalhes interessantes que, a rigor, podem não corresponder exatamente à idéia que deles faço hoje. Refiro-me não a objetos, mas a coisas como cores, tamanhos e distâncias. Se bem que as distâncias e os tamanhos sejam a mesma coisa – dimensões. Explico: quando se é criança, tudo nos parece maior. O que hoje é “daqui até ali” era, naqueles tempos, “daqui até lá longe”. Aquele tio grandão é, hoje, menor que nós, os donos das lembranças.

Ao escrever sobre Natais, lembrei-me do desencanto: eu via adultos irem à loja do Tio Aníbal, onde meu pai se dedicava para ganhar o sustento da família, e adquirir brinquedos vários; no dia seguinte, meus amigos exibiam os presentes que Papai Noel lhes deixara sobre os sapatos ou nas janelas dos quartos. Foi fácil deduzir...

Mais tarde, já adolescente (naquele tempo, a palavra não era utilizada; diziam “rapazinho” e “menina-moça”), descobri os conceitos de Ano-Novo. Na meninice, era dia de comer leitoa assada como prato principal em meio a muitas outras comilanças, encerrando o ciclo natalino. Sim: começava como peru, terminava com o leitão ou leitoa (digam-me, que diferença faz, nesse momento, o gênero do bacorim?).

Mais do que o Ano-Novo, descobri o réveillon, palavra francesa para “revelação” que, entre nós, brasilis, restringe-se à passagem do Ano-Novo, o despertar de uma nova numeração – daí, talvez, a contagem regressiva para, num imaginário relógio digital, vermos, por exemplo, o 4 entrar no lugar do 3, como na última mudança.

Mas, pensava eu, além da ressaca, além daquela sensação costumeira (para mim) de ver o dia amanhecer ao meio dia, o Sol como que nascido no meio do céu, a boca rescendendo a bílis e os olhos enxergando tudo lilás – qual era a diferença? Efeitos assim eu vivera noutros domingos pelo ano afora, algumas vezes.

Nossos ídolos tinham a nossa idade...

Usávamos, na minha juventude feliz (como devem ser todas as juventudes) e ligeiramente irresponsável nos momentos possíveis, uma expressão de que sempre gostei e da qual não me esqueço: pegar o sol com a mão. Ah!, doce irresponsabilidade! Mas até a irresponsabilidade pede disciplina; nos dias de estudo e de trabalho, sempre foi impossível agir irresponsavelmente; para isso existiam os fins de semana, os feriados e as pequenas viagens nesses recessos. Não tenho contas das vezes em que “peguei o sol com a mão” no Rio de Janeiro, em Caldas Novas, em Pirenópolis e aqui em Goiânia – as minhas cidades de morada e amor. Houve outras, de muitas outras noitadas marcantes, mas eram cidades bissextas (como diria Manuel Bandeira); igualmente maravilhosas, mas a geografia das minhas cidades tem registros mais fortes.

Alegria de pegar o Sol com a mão
E a doçura das lembranças visita-me os olhos não pelo que eles colhem, mas vem de dentro, da memória para a retina; claro que não projetam, meus olhos, essas imagens, eles apenas revigoram o brilho ao receber tais lembranças. Essa memória, sim, é o que me dá um verdadeiro réveillon, a amostra real de que a vida se renova no tempo. Carlos Drummond de Andrade falou de quem inventou de partir a vida, ou o tempo, em dias ou semanas; e, ao dizê-lo, homenageou o Sol, o astro de maior incidência sobre nós, o que estabelece os dias, embeleza a Lua (que sugere os meses) e põe-nos na memória a consciência das estações e dos anos.


Paro e decifro, defino: com o tempo, com o viver, enxergamos diferente; as coisas e as distâncias parecem-nos menores, as cores ficam mais fortes, como que avermelhadas (como me ensinou o Lucas, meu filho temporão), mas a memória deixa-nos nítidos os sons e os odores. Ou seja: ainda que mudemos os algarismos finais em cada passagem de Ano-Novo, e ainda que vejamos a vida menos azul, nossos sentimentos continuam os mesmos, despertados por sons e cheiros de que jamais esquecemos.

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segunda-feira, janeiro 06, 2014

A UTI e O Pequeno Príncipe


A UTI e O Pequeno Príncipe


Desde a década de 50 do século passado, o pequeno livro de Saint-Exupéry dominava o gosto de crianças e adultos. Houve um tempo, lá pelos anos 60 e 70, em que frases da obra eram decoradas a muito sacrifício pelas candidatas a misses pelo Brasil afora – era o tempo em que toda menina-moça (hoje, adolescente) sonhava com os desfiles, as produções em pele e cabelos, os maiôs que evidenciavam corpos esculturais  . A preferida era “Tu te tornas eternamente responsável por tudo aquilo que cativas”. Mas sempre ficava claro que elas, de fato, não leram...

Na minha memória ficou marcada uma das historinhas do Pequeno Príncipe, que vem a ser o diálogo dele com o Rei. Foi assim:

O principezinho procurou com olhos onde sentar-se, mas o planeta estava todo atravancado pelo magnífico manto de arminho. Ficou, então, de pé. Mas, como estava cansado, bocejou.
– É  contra a etiqueta bocejar na frente do rei, disse o monarca, Eu o proíbo.
– Não posso evitá-lo, disse o principezinho confuso. Fiz uma longa viagem e não dormi ainda...
– Então, disse o rei, eu te ordeno que bocejes. Há anos que não vejo ninguém bocejar! Os bocejos são uma raridade para mim. Vamos, boceja! É uma ordem!
– Isso me intimida... eu não posso mais... disse o principezinho todo vermelho.
– Hum! Hum! respondeu o rei. Então... então eu te ordeno ora bocejares e ora...
Ele gaguejava um pouco e parecia vexado. Porque o rei fazia questão fechada que sua autoridade fosse respeitada. Não tolerava desobediência. Era um monarca absoluto. Mas, como era muito bom, dava ordens razoáveis.
"Se eu ordenasse, costumava dizer, que um general se transformasse em gaivota, e o general não me obedecesse, a culpa não seria do general, seria minha.

Evoco essa passagem literária por duas razões: uma delas, de grande importância na Educação e que ofereço à jovem Alice Cristina Oliveira, aluna do Colégio Estadual Martiniano de Carvalho (Nerópolis, Goiás), que me postou o seguinte: “As funções de um livro de literatura são: entreter, emocionar e transformar. Concorda?”. Sim! Bem a propósito do que me escreveu a professora Beatriz Tupá, minha amiga de infância (Caldas Novas, claro!): “Se você planeja para um ano, plante arroz; se planeja para décadas, plante árvores; se for para a vida toda, eduque pessoas”.

A segunda diz respeito a decisões precipitadas. Daí  o fato de eu evocar o imortal escritor francês (e piloto na Segunda Guerra), a jovem aluna do Ensino Médio e a veterana professora – tudo para ilustrar o que eu soube estes dias: um juiz enviou a um hospital público estadual, em Goiânia, uma ordem, no devido papel timbrado de sua Vara Judiciária, uma determinação: que a criança Fulano(a) de Tal seja internado imediatamente na Unidade de Terapia Intensiva do citado nosocômio (aqui, estou revisitando os jornais da década de 60). O diretor, médico zeloso e bem formado, amante inveterado do ofício e cioso de seu compromisso para com a saúde pública e as vidas que lhe são confiadas, respondeu “na bucha”:  

– Perfeitamente, doutor juiz! Mas só posso fazer isso se o senhor vier aqui e escolher qual o paciente que eu devo retirar da UTI.

Traduzindo: o juiz deu a ordem, a vaga há de surgir; mas o único modo de se criar essa vaga é com a saída de algum dos meninos ali internados. Ou seja: ao juiz caberia escolher quem devia morrer para propiciar chance de salvamento para outrem. Ou que se pesquisasse a existência da vaga em outras unidades hospitalares, na capital ou em cidade próxima.

O juiz não leu “O Pequeno Príncipe”, certamente; ou não se lembra. E alguém precisa dizer-lhe também que vaga em UTI não é uma cama a mais – é todo um aparato de instalações e aparelhos; criar leitos de UTI implica estudos delongados e detalhistas.

E o general, certamente, não se transformará em gaivota...

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