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sábado, novembro 29, 2014

A rua virou um rio

Crônica publicada no DM (Diário da Manhã, de Goiânia) em janeiro de
2001. A velha cantilena das enchentes e dos dramas que elas nos
trazem – em contraponto com a seca que ameaçou impor a sede
à nossa maior metrópole. Republico-a em nome da memória,
nesta semana em que Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo
fecharam um acordo sobre o Rio Paraíba do Sul (L.deA.).




A rua virou um rio

  

         Há horas, o céu era de um azul forte, bonito, permeado de nuvens alvas como uniforme de antigas normalistas. Alguém se lembra das normalistas? Aquelas moças que, após o ginasial, escolhiam fazer a chamada Escola Normal, que tinha aqui em Goiânia sua maior referência no Instituto de Educação.

         Ah, no Rio de Janeiro também! Existe ainda um belo casarão, em arquitetura de estilo, na Rua Mariz e Barros, na Tijuca, que, até os anos 70, era referencial obrigatório na saudade carioca. Da infância, ficaram os versos de David Nasser (música de Benedito Lacerda) que Nelson Gonçalves imortalizou: 

                   Vestida de azul e branco
                    trazendo um sorriso franco
                    num rostinho encantador
                    minha linda normalista
                    rapidamente conquista 
                    meu coração sofredor”.

         Mas não é de normalistas e de samba-canção que trato nestas linhas. Falo de céu azul e nuvens brancas que, em pouco, se vestiu de um pesado cinza, com tons mais escuros no quadrante sul. Em pouco, grossas gotas marcavam compasso de dobrado e rapidamente era choro em notas graves de cordas e arcos em orquestra. Corre-se a fechar janelas, proteger-se da água sob ação de ventos e rapidamente o ar se resfria. Não demora a ganhar, a chuva, seu ritmo de poema longo e monótono. Não ligar computador, que está conectado à rede e pode haver raios. Havendo raios, perde-se o modem, é capaz. Faz-se calma a rua, lá em baixo. Ninguém nas calçadas, poucos carros transitam lentos; faróis acesos, embora seja dia.

         O garoto de cinco anos delicia-se com o que vê – a rua virou um rio, diz ele, sugerindo um poema moderno, três versos apenas, mas não é haikai, que não tem a métrica: 

                   Rio
                   porque a rua
                   virou rio. 

         Bem podia ser haikai, sim: 

                    Foi-se a rua. 
                    Sob célere torrente 
                    virou rio.

         A noite já vem, e com ela o telejornal ao pôr do sol, pois que há horário de verão. O modesto rio da torrente aqui em frente apenas sugere o lamaçal que obstruiu avenidas, fez escuro, apagou sinais de luz dos cruzamentos, enfureceu córregos e transformou vidas. Há entrevistas de bombeiros militares, esses que chamamos defesa civil. Famílias em desabrigo, funcionários barnabés a buscar guarida para tantos. Existem casas desocupadas, a prefeitura as oferece – mas eis que foram invadidas por sem-tetos desde ontem, diz o locutor. Um pai chora ante a câmara, e a casa acaba de cair: só resta a parede de fachada.

         Agora, fala o coronel-bombeiro-militar-defesa-civil. Sua entrevista também é interrompida, a água furiosa arranca mais barranco. No peito da gente, dói uma dor feito verruma: sensação de impotência, vontade de fazer alguma coisa, ajudar, sei lá!

         O locutor volta à tela e conta: outra margem de córrego também acumula desabrigados e, entre estes, gente que nas enchentes do ano passado ganharam casas, casas próximas às casas que os sem-tetos invadiram ontem. E não estão lá porque, assim que as chuvas passaram, venderam suas casas e voltaram para a margem do córrego.


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domingo, novembro 23, 2014

Educação, Cultura e Esporte

Educação, Cultura e Esporte


Há um tempo, não muito, conversávamos uma professora universitária e eu. Inevitavelmente, caímos no tema Educação e ouvi dela que “não tenho como me ocupar de formar o cidadão; a mim me cabe formar o profissional”. Não me foi difícil mostrar-lhe que a escola básica, isto é, as fases da tenra infância, seguida do processo da alfabetização e do fundamental, e ainda o que chamamos hoje de Ensino Médio, são os momentos em que, de fato, se forma o indivíduo; os cursos profissionalizantes, ou seja, a universidade, visa de fato à formação do profissional.

Ainda alcancei a universidade com algo entre 20 e 30 cursos, considerando a diversidade nos cursos de licenciatura (formação de professores) e nos de engenharia, cada habilitação equivalendo a um curso; hoje, quantos cursos já no universo acadêmico? A atividade humana multiplicou-se e convivemos hoje com milhares de novas atividades, muitas delas integradas em segmentos diferentes, re-universalizando as relações humanas (sim, pois houve um tempo em que receávamos que um médico especializado em tratar do dedo mindinho não se entenderia com um polegar).

Sou também do tempo em que as escolas ensinavam, por exemplo, Canto Orfeônico e Trabalhos Manuais, e as aulas de Línguas estimulavam-nos à leitura e à prática de escritas como o poema, a descrição, a dissertação, a carta... Éramos motivados a escrever. E assim, convivi, na mocidade e também na fase madura da vida profissional com bons redatores, ainda que não literatos. E dos meus contemporâneos, os que não escolheram tocar algum instrumento tornaram-se, ao menos, bons ouvintes, capazes de selecionar músicas de melhor qualidade, acopladas a letras de apelo poético (os professores de Letras ensinam que “letra de música” é canção – um termo variante do poema).

Nas últimas décadas, como sempre fiz ao longo de muitos e muitos anos, visito escolas. Converso com professores e estudantes, revivo meus tempos de professor e reanimo-me à escrita. Percebo que existe uma geração profissional em salas de aula a denunciar falhas em sua formação acadêmico-profissional; no meio acadêmico, professores reclamam que os alunos saem do Ensino Médio mal preparados – e entramos no ciclo vicioso.

O triste é que as autoridades da Educação preocupam-se com a pré-escola e com o Ensino Fundamental, mas abandonam o Ensino Médio à sanha comercial dos cursinhos que objetivam tão-somente fazer com que o aluno passe nos exames vestibulares – é o que nos preocupava em 1970, quando nasceu a “indústria dos cursinhos”.

Os governos falam em Educação apenas para referir-se à formação da mão-de-obra, e deixam a formação do cidadão para os quadros subalternos do Ministério da Educação; o Ensino Médio tornou-se o gargalo asfixiante entre aquilo de se fazer-o-cidadão e formar profissionais.

Por que digo tudo isso? Porque antevejo uma grande chance, em Goiás, para a melhoria do Ensino Médio e, com a extensão aos ambientes municipais, ao Fundamental; refiro-me à junção política das áreas de Cultura e Esportes à Educação. Há anos reclamávamos da falta de bons representantes esportivos nas Olimpíadas; e de uns poucos anos para cá, sentimos uma queda vertiginosa do nível cultural dos nossos novos profissionais acadêmicos – e,  por extensão, os de nível médio também (haja vista a disseminação da música comercial de má qualidade na preferência de grande parte dos profissionais liberais, ao lado da confissão nada constrangedora de notáveis quanto à leitura e ao teatro, por exemplo).

Essa reforma anunciada e em fase de apreciação pela Assembléia Legislativa poderá nos propiciar esta chance. Vai depender, muito, dos nomes escolhidos para os três postos – secretário e subsecretários.

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sábado, novembro 15, 2014

A reforma e a Cultura

A reforma e a Cultura


Na última quinta-feira, o governador Marconi Perillo assustou políticos, correligionários e alguns segmentos das atividades goianas com a proposta de reforma administrativa já aguardada com alguma ansiedade. Essa proposta, já protocolada na Assembléia Legislativa, reduz de 26 para apenas 10 as secretarias que constituem seu governo, aglutinando algumas atividades, de modo a racionalizar custos administrativos.

Essa é uma exigência que a sociedade brasileira faz ao governo da União, hoje formado de 39 ministérios e várias agências específicas. Recordo-me de, ao tempo de 12 a 15 ministérios, as Forças Armadas dividirem-se em três pastas distintas; criou-se um Ministério da Defesa e as três Armas caíram para o segundo escalão; a mudança apenas centrou em um ministro civil (e, convenhamos, os que até agora ocuparam o cargo valeram-se dele para se despontar na mídia; mas essas forças funcionaram sob seus respectivos comandos).

Aqui, numa reforma de 16 anos atrás, a Secretaria da Segurança Pública absorveu os comandos-gerais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar, além da Polícia Civil que era, até então, a única grande instituição sob a SSP. Esta, agora, absorve a que cuidava dos presídios.

Dentre as 10 pastas remanescentes, cinco ficarão intocáveis: Governo, Planejamento, Casa Civil, Fazenda e Saúde. A Educação saiu fortalecida, acolhendo as de Cultura e de Esportes. Certamente, estes dois seguimentos serão dirigidos por subsecretários.

O que muda? Menos gastos em gabinetes; menos pessoas nas reuniões de secretários – salvo quando o governador convocar reuniões em que haverá de pormenorizar avaliações e novos rumos – ou cobranças. O andamento da máquina, creio eu, dar-se-á no mesmo tom e talvez até com mais eficácia; não há muito tempo, alguns procedimentos burocratizaram excessivamente na medida em que um secretário se empenhava em destacar-se a qualquer custo. E que custo!...

Por outro lado, o enxugamento da grandiosa mesa de reuniões refletirá, além da contenção de custos administrativos, em menor influência partidária na máquina de gestão. Vejamos: a estrutura federal, com tantos ministros, presidentes de agências e gestores intermediários como os presidentes de estatais e seus vice-presidentes, num universo bastante ampliado, resultou, por exemplo, no que a chamada Operação Lava-Jato da Polícia Federal mostrou na manhã da sexta-feira, dia 14/11: a prisão de 18 pessoas, entre presidentes de empreiteiras e dirigentes da Petrobrás e de subsidiárias – as razões já são por demais sabidas.

Bem, vou resumir: a política cultural no nosso Estado só se deslanchou quando tivemos autonomia na gestão e pessoas certas na direção. Voltar à Educação, sem que o gestor de Cultura e o de Esportes tenham competência já comprovada é regredir. Mas o equipamento físico e imaterial de ambos os segmentos são indícios de que o governo pretende continuar acertando – como temos visto no já citado segmento da Segurança Pública.

A política cultural – um segmento do qual entendo um pouquinho – continuará seu caminho, sem dúvida. Quanto à qualidade dos feitos, isso cabe a nós, artistas e intelectuais criadores de cultura.

Acredito nos propósitos e na seriedade de Marconi Perillo. E sei que todos nós, produtores culturais, estaremos atentos às ações da pasta da Cultura – autônoma ou “dentro” da Educação. E ressalto mais: no tempo em que a Cultura (dentro da Pasta da Educação) não se desenvolvia era porque os secretários eram médicos ou advogados, e como tais professores eventuais; hoje, se tivermos um secretário que seja de fato educador, a Cultura anda e o Esporte também. Educadores sabem o valor dos esportes e das práticas culturais na formação do cidadão.

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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

sábado, novembro 08, 2014

Vergonha alheia

Vergonha alheia



Lá pelos idos de 1964, um dos milicos multi-estrelados que ocuparam o pódio teria dito, repetindo de alguém mais antigo: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Sim. Há quem a atribua ao terceiro presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, e também a outros estadistas de menor vulto daquele país, mas o verso ecoou por alguns espaços enevoados daquele abril.

Recordo que os defensores do golpe justificavam com essa frase, tida naqueles dias como se fosse do tal brigadeiro, mas alguém da imprensa cuidou de desqualificar o autor (sei lá o que aconteceu com tal jornalista). Sei mesmo é que a arrogância dos que se sentiam vitoriosos ao pronunciar a frase, com o indisfarçável propósito de justificar as prisões, os IPM e as torturas, durou pouco; os opositores imbuíram-se dela e passaram a conclamar consciência. Sei que esse foi um dos berços da resistência: a vigilância ininterrupta para resgatar a liberdade.

Mais recentemente, ouvi no rádio que ao colherem-se os louros numa outra revolução (1917, na Rússia), alguém indagou aos líderes sobre a liberdade ao povo, e a isso Stálin teria respondido com outra pergunta: “Liberdade para quê?”.

Desde a queda do muro de Berlim, os conceitos de esquerda e direita perderam o sentido no mundo. Caso ainda existam, é nas mentes de uns poucos, mas muito arraigadamente nas dos radicais de dois extremos que buscam preservar condutas e preceitos de antes. Esses dois extremos agem de modo a justificar como “em defesa do povo” as medidas contraditórias que a presidente reeleita tomou nestas primeiras duas semanas; o lado oposto, radical na mesma intensidade, tenta emplacar um movimento pelo impeachment da eleita (com base em quê, ora! Fez-se o jogo, dentro das regras; o resultado se deu rapidamente e não se o discute, fim de papo!).

Nas redes sociais, o clamor do ódio continua. De ambas as partes. São frases e apelos de provocações irracionais, raivosos, capazes de propiciar conflitos físicos em massa. Nos diálogos, há sempre os que propõem (alguns até exigem) a harmonia, a volta à paz, ainda que com o contraditório – tudo isso é do jogo democrático – mas há sempre os que transportam para este campo as atitudes das chamadas “torcidas organizadas”. Pessoas incapazes de exercer a conversa, a conferência, a conciliação das idéias.

E na mídia, o triste! Entende-se, a grosso modo, que profissionais da imprensa sejam pessoas melhor informadas e capazes de se expressar com desenvoltura. Mas a estes há políticos, alguns até parlamentares, da ala de apoio ao governo pregando a volta da censura, mascarada sob um eufemismo qualquer, tema esse que ressurge todas as vezes em que se noticiam irregularidades que envolvem o governo ou seus partidos de sustentação.

E do outro lado, alguns profissionais fazem o jogo miúdo dos radicais. Para bons ouvintes, frases e conceitos de Diogo Mainardi e Arnaldo Jabor enojam.  O primeiro, que abnega a pátria e vive longe, não corta o cordão; em seu ofício de ridículo oficial regiamente pago, procura sempre denegrir o país e a nação; agora, xingando os nordestinos que, em massa, preferiram Dilma a Aécio – dentre as boçalidade proferidas, chamou-os de bovinos (muitos nordestinos, em revide, associaram-no a outro animal com chifres).

Arnaldo Jabor difere pouco do burguesinho ítalo-ianque, mas desqualificou os eleitores do PT, tirando o foco centrado no Nordeste, mas estendendo-o até a “ignorantes intelectualizados”, certamente se referindo aos professores e artistas que se mobilizaram pró-Dilma.

Envergonho-me por eles...


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