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sábado, outubro 28, 2017

As cotas e os tempos

As cotas e os tempos



Quando aprendemos a ler, ficamos encantados: “Como pode isso? Uma série de desenhos a que chamamos de letras, dispostas em ordem tal que se tornam palavras nas nossas mentes, ouvidos e voz, traduzem coisas tão abstratas quanto as ideias e, feito mágica, tornam-se coisas concretas”.

O tempo que passa por nós ensina-nos muito mais coisas. Das letras, entendemos, pouco a pouco, que não basta formar palavras ao juntá-las, será necessário aprender e seguir incontáveis regras para que as escritas se tornem, de fato, algo capaz de nos informar – e nos formar. Os textos ensinam-nos muito mais! E o tempo “cura” o nosso aprendizado. Aprender enriquece, dá alegria, felicidade, prestígio e, ainda, os meios para nos cercarmos de seres, que se tornam amigos e até mesmo irmãos eleitos!

Todas as coisas, porém, têm dois lados, ou mais. E nessas variantes descobrimos que existem, também, armadilhas que a vida nos prega, como a interpretação unilateral, radical ou fundamentalista, porque subjetiva. A diferença, porém, não significa tristeza, derrota ou desânimo: ela nos prepara para o tão propalado contraditório – uma das palavras na moda nesta segunda década do século vinte-e-um. O contraditório soa-me como acorde musical, ao contrário de neologismos de sons ruins, como “empreendedorismo”, que bem poderia ser, apenas e corretamente, “empreenderismo”; ou “empoderamento”, aplicado como coisa-nova que se consolida. Bem podiam ser mantidas as anteriores: “força”, “conquista” e a raiz “poder” – mas sempre há quem se atreva a sugerir uma novidade que os menos esclarecidos esforçam-se por impor. É a época do politicamente correto – outra novidade calcada muito mais em vocábulos do que em ações. Sim: os líderes desse movimento “neodicionarista” (terrível, este também... desculpem-me) empenham-se na construção de palavras, mas as ações, ah! Ficam sempre relegadas.

Nessa onda, e em atitudes ou atividades a que muitos se alinham sem sequer saber a razão, veio a luta contra as cotas nas universidades, visando a dar chance aos “excluídos por razão de cor ou raça”. E veio a luta contra as cotas para pretos, índios etc. E quem mais prega contra isso são os admiradores baba-ovos do “american way of life”, sem saber que a moda veio “de lá”.

Vejamos o que conta o engenheiro agrônomo Nilson Gomes Jaime – mestre e doutor, escritor, genealogista e cidadão coerente em seu esforço social e suas atividades profissionais. Pincei o texto de uma discussão entre ele e o primo Dido Gonzaga Jaime. Não enfatizo o embate, mas o destaque que colhi, onde se lê:

Meu pai era militar, radical defensor da "Benfazeja Revolução de 1964". Na 7a. JSM, em Palmeiras (GO), onde ele expedia as certidões de reservistas, tinha que se vestir paletó e gravata, cortar o cabelo, jurar a bandeira e cantar o Hino Nacional. Aos 14 anos eu já lia artigos militares que ele me repassava e revistas de cunho lacerdista e militarista. Só que comecei a ver realidades menos evidentes àquelas anunciadas pelos militares e pelos órgãos de imprensa, sob censura. Aos 16 já lutava contra a ditadura. Se alguma coisa faltava para ver as injustiças de um regime de direita, o vestibular que prestei, e em que fui aprovado para a Universidade Federal de Goiás, me levaria a ele. Ingressei na UFG concorrendo a apenas 50% das vagas, porque não tinha fazenda, nem era proprietário rural. Isso mesmo: 50% das vagas dos cursos de Agronomia e Veterinária da Universidade Federal de Goiás – e nas de todo o Brasil – eram reservadas para filhos de fazendeiros. Ou seja, cotas para ricos. Hoje quando se fala em cotas para negros, o mundo cai. Entretanto, quando entrei na UFG (em 1980), de uma turma de 40 alunos, apenas uns cinco eram pardos, como eu. Nenhum preto. Isso em um país em que mais de 50% da população é de negros (pretos e pardos). O que cabia a um jovem de 17 anos que já pensava? Ficar do lado dos que tentavam embargar-lhe o caminho da universidade por força de um decreto ditatorial que privilegiava ricos? Não! Absolutamente não! Juntamente com Osmar Pires Martins Junior e centenas de outros companheiros pelo Brasil, intensificamos nossa luta contra a Lei do Boi e contra o perverso regime que a criara e a sustentava. Derrubamos a Lei do Boi, a cota social para ricos.

E aqueles estudantes não criaram neologismo algum. Apenas agiram.


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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

domingo, outubro 22, 2017

Falar e escrever

Cronistas, professores e mestrandos em Letras da PUC Goiás

Falar e escrever (II)

(Crônica publicada em maio de 2013, republicada em agradecimento à atenção dos mestrandos de Letras da PUC Goiás, pela acolhida que propiciaram a nós, escritores de crônica (Lêda Selma, Leonardo Teixeira, Brasigóis Felício e eu), na III Jornada de Leitura da Literatura Produzida em Goiás.





Ah, língua brasileira! Não haverá, jamais, acordo internacional capaz de propiciar ao linguajar humano uma homogeneidade, seja qual for. Alegam os defensores do famigerado acordo que a escrita, em língua castelhana, é padronizada desde a Terra do Fogo, a fronteira Sul entre o Chile e a Argentina, até as margens do Rio Grande, que separa México e EUA; e também nas ilhas oceânicas em que pisaram os naturais de Espanha.

A escrita será igual; a linguagem, não – afirmam. Sim, isso é perfeitamente compreensível, haja vista termos aprendido que as vogais têm sons abertos – a, e, i, o u –, mas, ultimamente, os coleguinhas jornalistas dos veículos falados referem-se à Avenida Ê – mas até há bem pouco tempo dizíamos Avenida E (é). Sei que há forte influência dos paulistanos e sulistas, presenças marcantes em Goiás desde o início do agronegócio; então, porque eles falam “éstra” no que entendíamos, até recentemente, como “extra” (ê)?

É certo que apreendemos e incorporamos muito do que ouvimos de nordestinos, nortistas, sulistas e cariocas, mas o sotaque de nossa herança passa, obviamente, por transformações interessantes. Está desaparecendo, por exemplo, o modo de falar das nossas cidades auríferas – Vila Boa de Goiás, Jaraguá, Meia-Ponte, Corumbá, Santa Luzia, Bonfim... quem viveu os anos que vivi (estou na segunda metade da minha década de 60) sabe que a musicalidade do falar goiano está muito diferente, agora.

Brasigóis Felicio, Leonardo Teixeira, a coordenadora Fátima Lima, Leda Selma e Luiz de Aquino.

Gosto de ouvir nossas palavras cortadas, abreviadas; de uma, apenas, não gosto da síncope: gueiroba em lugar de guariroba. Na escrita, alguns escribas, de livros e de jornais, substituem a bonita forma pequi por piqui, alegando a pronúncia. Ora: a gente escreve futebol e pronuncia futibol. E há quem banque o chique escrevendo – especialmente como nomes próprios – theatro em lugar de teatro. E falam “tê-atro”, em vez de tiatro, como seria o regular da nossa fala local.

Leda Selma e eu.
“Vontá dimbora durmi”, é frase comum no falar coloquial. E responder, gritando, a um chamado com o infalível “Tô ino”, em lugar de “Estou indo” é goiano demais da conta! Mas o que mais se nota – e a frase já se espalha por todo o país, especialmente entre os entrevistados na tevê – é “O marrapossível”. É o que respondem políticos e técnicos, delegados e coronéis, professores e populares diante dos repórteres.

Ah, os repórteres! Destes, no rádio e na tevê, ouço sempre e me divirto: “departamento pessoal” em vez de “departamento de pessoal”. O mesmo se dá quando devem dizer “corpo de delito” – o “de” é novamente omitido. E a moda, que saiu das falas dos “da imprensa”, alcança agora advogados e delegados de polícia.

Meu  livro de crônicas sob o tema da linguagem brasiuleira


Na escrita, porém, essa que foi “padronizada” pelo acordo entre os países de línguas lusófonas, o bicho pega! Mesmo profissionais que deviam saber misturam C com S, não sabem onde entra o Ç e usam X, SS e Ç como se isso fosse tão normal quanto escrever Pollyanna ou Hytallo. Ou Rhackell.
     
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Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras. 

domingo, outubro 15, 2017

Sinais dos tempos... Quais?

Vênus de Milo - obra da Antiguidade, encontrada em 1874 no Monte Esquilino




Sinais dos tempos... Quais?



Sim... Quais? Que tempos são estes, em que um segmento da sociedade, ocasional e oportunamente, se emerge em nome de uma moral reinante nas cercanias das paróquias inquisitoriais?

Vejamos... Vivemos a falência de importantes valores morais, mas não se aplica tal oposição à hipocrisia, ao cinismo e ao descaramento que conduz “ilustres” políticos – parlamentares e ministros, capitaneados por autoridades do Executivo e do Judiciário – à ostensiva defesa, em atos e palavras, sem sequer se corarem!

Adotam atitudes que equivalem a indisfarçáveis confissões de culpa!

Expressam votos “técnicos” que carimbam a decisão com a evidente destinação da atitude assumida – e, repito, não se envergonham por isso!

E então, numa mostra de arte bancada por um banco na capital mais ao sul, Porto Alegre, artista desta época dá ares atuais à arte mais refinada do milenar Kama Sutra. E a moralidade da famigerada (de triste memória) TFP se expressa em defesa “da família, da moral e dos bons costumes”!

À falta de sustentação filosófica, apelam para os clichês de “combate aos comunistas” (o que me remete a um provérbio da roça da minha infância: “Depois da onça morta, qualquer vira-lata quer mijar no couro”).

Davi, de Michelangelo, mostrada ao público em 8 de setembro de 1504.


Na Renascença, a par com o rigor da Santa Inquisição (merece maiúsculas? Não, salvo pela mera identidade com uma fase da História), Michelangelo concebeu nus, em pintura e escultura, admiráveis até hoje!

Outra mostra, com atores em movimento, expõe um homem grisalho nu e uma mãe estimula a filha criança a tocar o homem.

Vozes a favor e contra elevaram-se e ganharam admiradores e contestadores. Divulguei alguns vídeos, sem opinar. Seria necessário? Mas fui acusado de “divulgar o indesejável”. Uai! Minhas práticas sexuais, como as de quem quer que seja, de John Lenonn a Chiquinha Gonzaga, de Madame Satã a Fábio Júnior, são itens individuais. E esta mesma humanidade, há três mil anos, pratica muita coisa no quesito sexo que, quando adolescentes, pensamos que nós os inventamos.

Desde que os textos ganharam formas e imagens poéticas, o erotismo virou literatura. Cínicos são os que torcem narizes a isso, mas enchem o mundo de filhos – como os religiosos que “condenam” os fiéis, mas lambuzam-se de luxúria com mulheres (e homens também, uai!) em suas intimidades.

E aparecem os pregadores da “moral cristã” ou das doutrinas “judaico-católicas”, dos preceitos difundidos por pastores e padres em colheitas seletivas no Antigo Testamento, estimulando seus “fiéis” a demonstrarem que “destruir a família é meta do comunismo, desde Marx e Engles”.

Poxa! Como manipulam a História e deturpam tudo! Digam, pois, que Platão era comunista dois mil e tantos anos antes de Marx, pois ele sugeria uma “república” em que as crianças eram transferidas pelos pais ao Estado para se formarem trabalhadores braçais, profissionais de ofício e até o ápice de poetas e filósofos – a estes cabendo o governo.

E o sexo fora do preceito religioso de “papai e mamãe, e só para a procriação”, tão enfatizado pelos religiosos e falsos moralistas, escapa das artes plásticas, em duas ou três dimensões, da literatura, do teatro e do cinema.

No paralelo, essa estranha “ideologia de gêneros” que contesta a ciência e diz que “todos nascem sem sexo, a escolha vem depois” – e nisso, pelo que se propaga, até mesmo poderosíssima empresa de alimentos e cosméticos pega carona por conta de um antigo trocadilho do vulgo em tono das palavras “homo” e “omo”.

Que tempos, hem? Tempo de péssima escolaridade! E este texto sai no jornal justo neste 15 de Outubro de 2017, Dia do Professor – desta vez, consagrado à heroína de Janaúba, Minas Gerais, a professora e mãe Helley Abreu Batista, por ter conseguido, indiscutivelmente, conter o número de vítimas de um ato de insanidade.

Aos moralistas de plantão, só um recado: deixem as artes em paz, escolham vocês, caso sejam pais e educadores, como educar seus filhos para serem felizes e bons cidadãos, livres e determinados, em lugar de erotizá-los antecipadamente ou de impor diretrizes às suas identidades sexuais.  


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Luiz de Aquino é escritor, membro da Academia Goiana de Letras. 

sábado, outubro 07, 2017

Um beijo nos Andes

Um beijo nos Andes



Tenho muita vontade de cometer, ainda, umas poucas viagens na vida que ainda viverei – com a certeza do tempo mais exíguo a cada dia. Uma delas, a Portugal; outra, a alguns países africanos de onde trouxeram os povos pretos escravizados que, num destino de infinita grandeza, retribuíram deixando-nos a riqueza de sua cultura e o embelezamento da nossa gente brasileira. Mas uma outra encanta-me e, sem dúvida, instiga-me muito – quero conhecer os Andes, mas não por paisagens da janelinha do avião. Quero pisar as pedras e as neves, sentir de perto a floresta amazônica no Peru, conhecer seu povo.

Há em Goiânia um grupo de poetas que, amiúde, viaja para o Chile e o Peru, motivados pela magia que nos causam as viagens, mas com o mote inevitável da poesia. Assim, ora vão os nossos até lá, ora vêm os chilenos e peruanos – ou uns e outros, em separado – até Goiânia.

A cada regresso, são muitas as histórias encantadoras vividas e contadas, com o inevitável toque da poesia a florear os casos – ou causos, que bons goianos somos nós. Ora algum dos nossos é destacado lá com expressiva homenagem, ora um deles nos brinda com um novo livro de poemas que logo ganha versão brasileira e sua competente publicação – ou seja, os poetas de lá e de cá brindam-se mutuamente, com os corações e os atos.

Numa das boas histórias ouvidas dos nacionais viandantes pelas montanhas peruanas, veio a de uma viagem de ônibus. É que no grupo goiano uma das escribas destacou-se por agitar os ambientes: puxava cantoria e, se deixassem, formaria pares para danças, ainda que os seus escolhidos sequer quisessem dançar.

Aquilo fazia a goianinha viajora muito feliz! E na tal viagem, ela já fizera com que os brasileiros no ônibus, naquele trajeto pelo interior do país, cantassem canções escolhidas por ela, ainda que aquilo não fosse do agrado do grupo. Sabe-se bem: as pessoas cedem, muitas vezes, movidas por uma coisa que os jovens dizem ser “vergonha alheia”.

Mas daquela vez a escritora foi um pouco além. Ela viu, num banco mais ao fundo, um peruano típico, com seu traje característico – com chapéu e poncho. Caminhou no corredor e chegou-se ao moço, parece que pretendia trazê-lo para junto dos goianos. E aí veio a surpresa...

Peruanos são de estatura miúda, no geral. E o moço que a professora escolheu levantou-se, evidenciando enorme estatura. Assustada, a mulher estancou-se em silêncio. Foi o tempo bastante para que o rapaz a erguesse do piso, elevando-a até que seu rosto ficasse bem em frente ao dele, à distância mínima.

Assustada, a nossa amiga não sabia o que dizer ou fazer, apenas balançava os pezinhos no ar. E o moço, segurando-a com firmeza, trouxe-a para bem perto de si e aplicou-lhe um prolongado beijo na boca.

Ninguém se meteu! Ninguém achou que seria de bom-tom interferir num ato daqueles, e o moço só a pôs no chão, com admirável delicadeza, quando lhe faltou o fôlego, exibindo um sorriso de felicidade.

E a nossa heroína recolheu-se ao seu lugar, silenciosa e assustada, ante os risos eufóricos dos amigos. Quando conseguiu falar, ela apenas pediu:

– Não contem nada disso lá em Goiânia!

Mas, como é comum acontecer, o fato seguiu a sina das delações que se tenta manter em sigilo – alguém sempre acha um modo de “vazar”.

Alguns dos participantes desse grupo e uns poucos dos que tomaram conhecimento do atrevimento do feliz peruano estão, por estes dias, atentos – muito atentos: buscam saber até quando a pessoa se manterá discreta nos eventos, em lugar de provocar todo mundo para cantar e dançar, como é de seu agrado.


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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.